A bomba contratada da tarifa de ônibus

Do Valor Econômico
Foto: Arquivo/UNIBUS RN/Ilustração

O prejuízo das empresas de ônibus deve chegar, até o fim de dezembro, a R$ 8,7 bilhões. A estimativa, da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), revela um sistema que opera com 42% da demanda anterior à pandemia. Antecipa o potencial da bomba contratada para o início de 2021, quando tomam posse os novos prefeitos e vence o prazo para o reajuste tarifário na maior parte das grandes cidades.

Foi de um reajuste na tarifa de ônibus que nasceu o maior movimento de rua do século, a partir de junho de 2013. A contenção desta ameaça encontrou guarida num projeto de lei que repassa, em caráter emergencial, R$ 4 bilhões para que prefeituras e Estados adquiram créditos antecipados de tarifa para beneficiários de programas sociais. Aprovado pela Câmara, o projeto estancou no Senado.

Em poucas cidades o drama é tão radical quanto no Rio. Lá a falência do transporte municipal franqueou espaços para as milícias. Seja qual for o resultado eleitoral na capital fluminense, o novo prefeito as encontrará com força redobrada. A ausência do Estado na arbitragem da ocupação do espaço público durante a pandemia escancarou seus horizontes. Como já mostrou o Valor (04/08), a maior incidência da covid-19 no Rio aconteceu também nos bairros mais dominados pelas milícias.

Em poucas áreas, os milicianos cariocas encontraram tantas oportunidades de negócios quanto na exploração do transporte clandestino. Nos últimos dois anos, de acordo com dados da NTU, 14 empresas de transporte de ônibus fecharam na Região Metropolitana do Rio. A pandemia agravou a tendência com uma redução que chegou a 71% no número de usuários, ampliou a quebradeira e impôs a redução no número de veículos e linhas em operação.

O Ministério Público do Rio já identificou a atuação das milícias também na vandalização das estações do sistema BRT. Desde abril, cerca de cem estações foram vandalizadas ou furtadas (Diário do Transporte, 02/10). A ausência de perspectiva para o setor levou ao fechamento da unidade de modelos urbanos da Marcopolo, maior fabricante de ônibus do país, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O caos da pandemia e a bomba contratada para o futuro pouco se refletem numa campanha municipal ainda morna, a despeito de restar apenas um mês para a eleição.

O subsídio à tarifa de ônibus, adotado em 74% dos países da União Europeia, com fatias que vão de 26% (Praga) a 54% (Amsterdam), é restrito a poucas cidades no Brasil. Nenhuma delas alcança o patamar de São Paulo (38%). Em Florianópolis a tarifa é subsidiada em 21% do valor, em Vitória e Curitiba, respectivamente, em 16% e 14%. No Recife, não passa de 3%. O aporte do tesouro paulistano faz com que a passagem, que deveria estar fixada em R$ 7,12 seja de R$ 4,40.

Assim como no Rio, a queda na demanda de passageiros em São Paulo também chegou a ser de 70%. O prefeito Bruno Covas (PSDB), candidato à reeleição, já avisou que o subsídio, elevado para compensar a redução no número de usuários, deve chegar a R$ 3 bilhões neste ano e terá que ser ampliado no próximo.

Partiu do próprio prefeito uma das iniciativas que tende a impactar na demanda pelo transporte urbano. Em decreto publicado em setembro, Covas determina que o teletrabalho, para 120 mil servidores do município, não se restringirá à pandemia e passará a ser definitivo. A medida, contestada por sindicatos de servidores que reclamam não terem sido ouvidos e questionam o custeio da estrutura do teletrabalho, é uma das apostas da administração para fazer caixa com a alienação de imóveis.

Assim como a prefeitura, muitas empresas adotarão, em definitivo, o teletrabalho, impactando não apenas a ocupação dos prédios comerciais da cidade mas, de maneira decisiva, o transporte. O urbanista, professor da USP e ex-secretário municipal Nabil Bonduki, que disputará novamente uma vaga na Câmara Municipal, pelo PT, num coletivo de candidatos, diz que a proliferação do teletrabalho afetará o chamado subsídio cruzado na cidade.

Trata-se de um conjunto de mecanismos como o uso do transporte urbano por passageiros de pequenos trechos no centro expandido da cidade que, ao pagar a mesma tarifa daqueles que se utilizam do ônibus até o terminal, acabam por ajudar a custeá-lo. As viagens de curta duração, que já haviam sido afetadas pelos aplicativos, agora passarão a sê-lo também pelo teletrabalho. Como é proporcionalmente maior, entre moradores da periferia, o número de trabalhadores que não podem aderir ao teletrabalho, dada a natureza de sua atividade, as viagens de mais longa duração perderão uma fonte importante de custeio.

Entre os candidatos a prefeito, as propostas mais ambiciosas para o transporte municipal são dos candidatos Guilherme Boulos (Psol) e Jilmar Tatto (PT), que propõem tarifa zero, inicialmente para estudantes e desempregados, até chegar ao conjunto da população. Nenhum deles, porém, detalha como pretende viabilizar o financiamento de um sistema que custará, mesmo com a cobrança de tarifa, mais de R$ 3 bilhões ao contribuinte.

Nem sempre as propostas engenhosas têm vida fácil no debate público. Já tramita há quase um ano na Câmara Municipal de Porto Alegre, uma proposta que desnorteou os vereadores, por conter um viés de distribuição de renda e vir de um prefeito do PSDB que disputa a reeleição sob ameaça de impeachment. A proposta, do secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre, Rodrigo Tortoriello, foi encampada pelo prefeito Nelson Marchezan. Ao longo de toda a campanha, ficou paralisada na Câmara Municipal.

Ex-secretário de Transportes de Juiz de Fora, Tortoriello foi contratado por meio de seu currículo numa seleção de “banco de talentos” da prefeitura. Montou uma proposta de passe livre para o trabalhador, passagem de R$ 1 para o estudante, de R$ 2 para os demais usuários e redução do custo para o empregador que paga vale-transporte. Tudo isso financiado por um conjunto de iniciativas que taxam, primordialmente, o usuário do transporte individual.

Porto Alegre tem a segunda mão-de-obra mais cara do transporte municipal do país, mas a proposta não tira um centavo dos trabalhadores do sistema. A tarifa em Porto Alegre é hoje de R$ 4,70. A proposta começa por tirar R$ 0,15 que hoje são destinados à empresa pública de transportes coletivos. Depois aplica uma cobrança de R$ 0,28 por quilômetro rodado dos aplicativos e destina toda a receita para a tarifa, o que leva a uma redução de mais R$ 0,70. Outras cidades como São Paulo, Fortaleza e Curitiba já cobram taxas semelhantes.

A terceira fonte para redução da tarifa viria da implementação de uma “taxa de congestionamento”, a ser aplicada entre 7h e 20h, em dias úteis, para circulação no centro histórico da cidade. Pesquisadores de mobilidade urbana, como Ciro Biderman, colaborador de gestões petistas em São Paulo, também defendeu a taxa em debate recente na FGV-SP, instituição da qual é professor.

Tortoriello rejeita a alcunha de “pedágio urbano” por excluir a noção de compensação, a mesma que pauta as relações entre poluidores e o ambiente. Da mesma maneira que a empresa compensa o ambiente para poder poluir, o usuário de carro individual, já beneficiário dos investimentos públicos em ampliação da malha viária, da redução de IPI e do alargamento das faixas de circulação, passa a ser cobrado se quiser congestionar o centro da cidade.

A arrecadação da taxa, de R$ 4,70, seria destinada integralmente à tarifa, o que leva a mais R$ 1,60 de redução. O valor estimado para cobrança é 10% daquele estipulado em Nova York, a partir de 2021, no acesso às quadras ao sul do Central Park; 7% da tarifa já cobrada no centro de Londres; e até 4% da tarifa variável vigente em Santiago.

Até aqui a redução já soma mais de 50% do valor da atual tarifa de ônibus. Para tirar mais R$ 0,25 e chegar a R$ 2, Tortoriello prevê a utilização dos rendimentos da compra de passe antecipado, a tarifação de estacionamentos públicos e o uso de verbas de publicidade em vias públicas.

Já a gratuidade para trabalhadores de carteira assinada seria alcançada com o fim do vale-transporte que custa hoje R$ 240 e só vale a pena para aqueles que ganham até três salários mínimos. Todo funcionário pagaria R$ 63 por mês, use ou não o transporte público. O modelo é baseado no “versement transport”, imposto para o custeio do transporte público cobrado em todas as empresas da França com mais de 11 funcionários. Candidatos como José Fortunatti (PTB), se opõem abertamente ao projeto, mas a líder nas pesquisas, Manuela D’Ávila (PCdoB) evita criticá-lo.

Entidades dedicadas há décadas à busca de soluções para o transporte público, como a ANTP, convergem para a necessidade de cobranças do gênero para evitar que o sistema imploda. No Brasil inteiro, candidatos temem abespinhar condutores de carros individuais. Poucos, porém, foram tão longe quanto o prefeito do Rio e candidato à reeleição, Marcelo Crivella (Republicanos).

O prefeito comemorou a liminar do presidente do STJ, Humberto Martins, que reverteu, de uma canetada, 18 ações favoráveis às empresas que administram a Linha Amarela, via que liga a zona norte à zona oeste do Rio, anunciando o fim do pedágio que sustenta um empreendimento privado ainda não capturado pela milícia.

A coqueluche na campanha eleitoral de todo o país são as ciclovias. A proposta atende à demanda do eleitor apavorado ante a aglomeração do transporte público e converge no sentido de espaços urbanos mais sustentáveis. Não substitui, porém, a necessidade de uma solução para o transporte público, do qual depende a maioria dos moradores das periferias das grandes cidades, cuja perspectiva de emprego e renda colide com a necessidade de caixa das empresas de ônibus.

Por Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor

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