Da Revista NTUrbano
Foto: Júnior Mendes/Ilustração/Arquivo
Pesquisas buscam entender as mudanças de hábitos de deslocamento devido à covid-19; ida ao trabalho foi o principal uso do transporte coletivo durante a pandemia, mostrando a sua importância para a mobilidade e para a economia do País
Como a crise da covid-19 mudou a percepção dos usuários do transporte público? Para responder à essa pergunta, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o aplicativo de mobilidade urbana Moovit realizaram ampla pesquisa com 33 mil usuários da plataforma em nove cidades de sete países. O estudo revelou que, mesmo durante a pandemia, o transporte público foi fundamental para a maioria dos entrevistados: 54,6% fez uso do serviço pelo menos uma vez no período pesquisado, entre os dias 24 e 28 de abril de 2020.
As cidades pesquisadas no Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, foram aquelas que apresentaram as maiores porcentagens de uso, respectivamente 73,3% e 69,1%. A maioria dos participantes (77,1%) fez pelo menos uma viagem ao trabalho no período da pesquisa. A grande maioria dos paulistanos (80%) e dos cariocas (79,5%) utilizou o transporte público para ir ao trabalho. Entre os usuários, 75,3% pertencem à população economicamente mais vulnerável, que ganha até três salários mínimos.
Além de São Paulo e Rio de Janeiro, o estudo foi realizado em mais sete cidades da América Latina: Bogotá, Buenos Aires, Cidade do México, Guadalajara, Guayaquil, Montevidéu e Santiago, onde existe uma ampla base de usuários do Moovit.
Os passageiros identificaram redução da oferta de serviços em todas as nove cidades. Entre os que utilizaram transporte público, 75,6% relataram algum tipo de deterioração no serviço, em particular ônibus menos frequentes (54,2%). Algumas empresas cancelaram linhas e parte dos entrevistados (6% da amostra) afirmou que não encontraram nenhum serviço operando em sua rota habitual.
Dos que não utilizaram transporte público, 70,6% disseram que não precisaram viajar, provavelmente devido às medidas de confinamento ou por poder trabalhar de casa. Outros 25,9% viajaram por outros meios de transporte, como a pé, carro ou bicicleta, e 3,3% não puderam viajar devido à falta de serviço em sua rota habitual.
Entre os usuários que não utilizaram transporte público, 84,4% dos paulistanos e cariocas pretendem voltar a usá-lo após o fim das medidas de isolamento. Entre os demais, cerca de 12% estão indecisos e pouco mais de 3% não têm intenção de utilizar novamente.
Juan Palacio, gerente da Moovit, em entrevista para o Blog do BID, diz que mesmo durante a pandemia o transporte coletivo continua sendo um salva-vidas para quem precisa se locomover, mas alerta que as agências de transportes e operadores devem se adaptar rapidamente a novos modelos mais flexíveis que garantam mais segurança a motoristas e passageiros. “Esta pesquisa mostra que há oportunidade de mudar paradigmas”.
Para o professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), Pastor Willy Gonzales Taco, o estudo destaca a preocupação dos usuários em evitar a contaminação pela Covid-19, mas também mostra a importância do transporte público no país em meio à pandemia. “Há uma mudança de comportamento, visto que ainda são incertas as condições que as pessoas têm no transporte coletivo, principalmente em questões sanitárias. Mas o transporte público é a coluna vertebral da estrutura da mobilidade urbana. Sem ele, as cidades colapsam a população não consegue desenvolver suas atividades, porque a maior parte das pessoas que se deslocam para trabalhar depende dele”.
Na busca de entender melhor essas mudanças de comportamento na mobilidade urbana, o professor também está desenvolvendo um estudo junto com a Universidade Técnica de Desden, na Alemanha. A pesquisa foi estruturada pela universidade alemã e traduzida e adaptada para a realidade brasileira e da América Latina pelo Grupo de Pesquisa em Transportes e Novas Tecnologias da UnB. Ao final do estudo, os pesquisadores poderão compreender os hábitos adotados durante a pandemia e comparar a realidade da mobilidade entre os países.
“O estudo irá permitir revermos o que a gente tem definido como conceitos, políticas e objetivos da nossa mobilidade urbana, levando em conta que a mobilidade, de fato, será diferente do que vimos antes da pandemia. Então é interessante essa parceria para podermos pensar e vermos o que se pode melhorar na realidade do Brasil”, afirma Gonzáles.
Transporte vital
A coordenadora de Transporte Público do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), Beatriz Rodrigues, aponta que a pandemia colocou em evidência a falta de prioridade de políticas públicas do governo para o transporte público. “Essa crise sanitária e econômica proveniente da covid-19 mostrou todas as dificuldades e desafios que a mobilidade, principalmente o transporte coletivo, já estava enfrentando. E passou a escancarar ainda mais as desigualdades urbanas e a necessidade de resgatar políticas que considerem a mobilidade como serviço essencial, já fazendo valer o que está previsto na Constituição Federal”. Ela ainda destaca que o fato de o transporte público ser o único meio de deslocamento para a maior parte dos usuários de baixa renda mostra o quanto o setor é vital para o ir e vir da população.
Ainda na visão do professor Gonzáles, o transporte público vem mostrando nesse período de pandemia o papel importante que possui na mobilidade das cidades, por ser mais democrático que o transporte individual motorizado. Os sistemas de transporte urbano precisam mais do que nunca demonstrar uma capacidade adaptativa para se ajustar às diversas crises, sejam sanitárias ou ligadas a eventos climáticos cada vez mais frequentes. Investimentos em tecnologias e novas estratégias de mercado podem ser as saídas para o setor melhorar a qualidade do serviço e reter os usuários no pós-pandemia, que ainda se mostra uma incógnita.
“O transporte público é essencial, fundamental, imprescindível e vital para a população. E nós, nesse tempo de pandemia, temos uma janela de oportunidades na qual podemos ir avaliando tudo que vai acontecer para pensarmos em um sistema estruturante que tenha ao redor dele tecnologias e políticas públicas para que funcione como uma coluna vertebral da mobilidade urbana. Será que essas mudanças que de alguma forma estão se manifestando vão se manter na mesma medida ou vão crescer? Ou vão diminuir? Eu não sei dizer. Eu ainda não encontrei respostas para isso. Os próximos meses serão como uma espécie de laboratório real, um laboratório vivo do que será o transporte público posteriormente a esse evento de pandemia”, conclui.
O novo normal das cidades, com distanciamento entre as pessoas e possivelmente menor oferta de passageiros, exigirá que governos e operadoras se adaptem a esse novo cenário da mobilidade. “A configuração atual do sistema precisa ser de fato repensada e redesenhada. O risco ao transporte público não pode mais existir. Para promover as cidades de baixo carbono, menos congestionadas e mais justas, há uma urgência cada vez maior em garantir no transporte público regulamentações, operação e monitoramento que ofereçam de fato qualidade, cobertura, segurança e limpeza apropriadas, enfatiza a Beatriz Rodrigues. E acrescenta: “essas transformações exigem uma mudança nessa lógica e nesse modelo de planejamento de sistemas de transportes e de cidades que a gente vem levando até agora para que tenha, de fato, como principal foco, a redução das desigualdades no acesso à oportunidades e ações coordenadas que integrem políticas públicas em diversos setores”.