Do O Estado de SP
Foto: Guilherme Gandolfi/Ilustração/Fotos Públicas
Vandersilva Simeão Ribeiro Pedro, de 54 anos, mora na Vila Missionária, zona sul da capital. De casa dela até o bairro da Bela Vista, no centro, gasta uma hora, em média, para bater o ponto sem atraso, às 6h. Encarregada de limpeza, ela estudou até a 8ª série e, desde o início da pandemia de covid-19, não sabe o que é isolamento social. Passa três horas por dia no transporte público. Sai de casa às 4h para conseguir fazer o trajeto sentada e tentar tomar café da manhã antes de pegar no batente.
A 27 quilômetros da casa dela, o pesquisador e professor Pedro Senger, de 25 anos, não demora nem 10 minutos para chegar até seu local de trabalho, o Hospital das Clínicas, na zona oeste. Ele mora em Higienópolis, na região central, e faz o trajeto a pé. Sai de casa por volta das 8h, caminha trechos curtos de três avenidas e já está na porta do emprego. Isso quando precisa fazer algum serviço presencial, o que, para ele, é facultativo.
Moradores da mesma cidade, mas atendidos pelo território de formas totalmente diferentes, Vandersilva e Pedro foram convidados pelo Estadão para ilustrar os desafios do próximo prefeito ou prefeita de São Paulo na redução das desigualdades. E em áreas essenciais para a qualidade de vida dos paulistanos: saúde, transporte público, mobilidade, educação e lazer, meio ambiente, zeladoria e segurança pública.
A partir de suas experiências diárias, esta série de reportagens abordará temas obrigatórios para o debate nas eleições 2020, mas com o foco na saúde. O novo coronavírus fez aumentar as diferenças já gritantes na qualidade de vida de Vandersilva e Pedro, afastando ainda mais São Paulo de um conceito de política pública que visa ofertar aos cidadãos o básico em serviços municipais dentro de um raio de 1 km de casa ou 15 minutos a pé.
Idealizada pelo franco-colombiano Carlos Moreno, professor da Universidade de Sorbonne, em Paris, o conceito de criar “cidades de 15 minutos” ganhou fama na gestão da atual prefeita da cidade, Anne Hidalgo, reeleita em junho deste ano. Tudo pertinho: emprego, moradia, escola, posto de saúde, parque, teatro.
A explicação até que é fácil, difícil é aplicar, especialmente em metrópoles como a paulista. Os mapas de mobilidade de Vandersilva e Pedro ajudam a entender o desafio:
MOBILIDADE DE VANDERSILVA
Bairro de Vandersilva fica próximo a Diadema
Vandersilva precisa caminhar 15 minutos até o ponto todos os dias
MOBILIDADE DE PEDRO
Pedro mora na região da Avenida Paulista, cartão-postal da cidade
Pesquisador está a 60 metros de um ponto de ônibus
Estações próximas a Pedro facilitam acesso a todas as zonas de SP
Ciclofaixas no bairro garantem mobilidade gratuita e sustentável
Mas não é só do trabalho que Pedro está perto. Desde que passou a morar na Avenida Angélica, há dois anos, ele não se lembra de quando precisou pegar ônibus. Tem tudo o que precisa à mão. De hospital a parques, supermercados, farmácias e bancos. E a poucos passos de onde mora – exatos 186 – está a estação de metrô Paulista, da Linha 4-Amarela. “Não sinto carência de nada por aqui”, conta o educador físico.
Viver em um lugar onde todas as atividades essenciais estão a 15 minutos de distância a pé ou de bicicleta significa ter qualidade de vida. É ainda tradução de saúde e bem-estar, e para todos, pobres ou ricos, como afirma o urbanista Cândido Malta, especialista em planos urbanos locais.
“O fato de as pessoas mais pobres estarem desempregadas, o fato de a economia não conseguir crescer – e quando cresce, cresce com concentração de renda -, isso tudo faz com que essas desigualdades sociais se perpetuem, prejudicando toda a cidade, toda a população. Temos de reverter esse processo”, afirma.
Guardadas as devidas diferenças entre Paris e São Paulo, Malta ressalta que o ‘privilégio dos 15 minutos’ nunca será de todos. São 12 milhões na cidade, espalhados em moradias localizadas, muitas vezes, a 30 quilômetros ou mais de distância do trabalho.
Mas atenuar o sofrimento desses deslocamentos, ampliando a gama de transporte oferecida para que os passageiros ganhem tempo é mais que obrigação das prefeituras, especialmente daquelas que participam do C40, Grupo da Liderança Climática das Grandes Cidades liderado pelo ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg. É o caso de São Paulo.
“É uma utopia completamente irrealizável todos morarem perto do trabalho. Não dá para levar todos os empregos do centro para as periferias de São Paulo, assim como não dá para todos da periferia morarem no centro. Só na zona leste da capital são 4 milhões. É por isso que temos de dispor de um sistema de transporte que impeça as pessoas de passarem duas, três horas por dia para ir e voltar do trabalho”, completa Malta.
A rotina desgastante de quem mora longe do trabalho ainda pode trazer consequências negativas à saúde. Segundo o médico do tráfego José Montal, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET), não ter controle do tempo que se vai gastar no transporte, correndo o risco diário de se atrasar, é um fator de estresse e de complicações relacionadas à ansiedade e à perda da capacidade de raciocínio.
Outro risco, diz o médico, é o tempo que se fica em pé no ônibus ou no metrô. “Se está imobilizado no transporte, sem movimentar a panturrilha, você dificulta o retorno do sangue ao coração e acaba pagando um preço terrível: varizes, trombose e uma série de outros problemas graves”, alerta.
Para completar, a ausência de uma boa noite de sono é comum entre pessoas que passam muito tempo no transporte público. Elas geralmente saem cedo para ir ao trabalho e chegam tarde em casa.
Se você não dorme bem, termina descontrolando todo o sistema hormonal. Acaba também perdendo muito da característica da cognição e aí a atenção fica prejudicada. E é um prejuízo irrecuperável, você só acumula perdas”
Entre as consequências comuns dessa rotina nada saudável está a possibilidade de se desenvolver hipertensão e diabetes, já que o apetite também fica alterado. Vandersilva, que não raramente almoça um sanduíche, foi diagnosticada exatamente com as duas doenças crônicas no começo do mês.
Sistema de transporte não dá fluidez a quem anda de ônibus
A capital dispõe hoje de um sistema de ônibus com mais de 1,3 mil linhas, que transportou, em 2019, um total de 2,6 bilhões de passageiros. Mas, a maioria dos percursos é feita dividindo espaço com os carros, já que apenas 257,3 quilômetros de vias de São Paulo são dedicadas exclusivamente aos coletivos, por meio de corredores. Esse número é o mesmo de 2016 pra cá. Nenhum metro foi acrescido à malha.
E o prejuízo de quem mora distante do trabalho não se dá somente no tempo gasto (como se isso já não bastasse), mas no bolso. A passagem de ônibus em São Paulo custa hoje R$ 4,40 e a integração do sistema com o metrô sai por R$ 7,65. Para o trabalhador que arca com esse custo, o valor pode passar de R$ 15 por dia – ao menos R$ 300 por mês.
Apesar de ter deficiências, o transporte não é o maior vilão quando o assunto é mobilidade, de acordo com o arquiteto e urbanista Vinicius Andrade, do laboratório Arq. Futuro de cidades do Insper.
“Achamos que a raiz da questão é que os empregos estão concentrados na área central e a habitação está na periferia. É um problema de segregação socioespacial”, diz. Uma das soluções, segundo ele, está assegurada em lei, mas ainda não saiu completamente do papel. “O Plano Diretor Estratégico, de 2014, propõe trazer ao menos uma parte dessa população que está na periferia para morar no centro, onde existe infraestrutura ociosa”, diz Andrade.
Outra proposta seria produzir uma cidade mais policêntrica, sem concentrar toda a demanda em um único centro. “Parte das comunidades na periferia estão bem estabelecidas, mas sem infraestrutura. Uma possibilidade é valorizar esses pólos com qualidades e identidades próprias, e incentivar uma economia local para geração de empregos, levando urbanidade completa para esses lugares.”
Ganhar tempo nos deslocamentos gera maior qualidade de vida
O prefeito que investe em transporte público, de acordo com o especialista em mobilidade urbana Vladimir Fernandes Maciel, também investe em saúde pública. ”Apesar de os ônibus poluírem, uma frota de deslocamento baseada em transporte público polui menos do que todos os carros na rua. O ônibus carrega muito mais pessoas por unidade de poluição. Mas, mais do que isso, é o transporte coletivo que permite às classes de baixa renda também se locomoverem pelo espaço urbano. E permite ganhos de eficiência como um todo para a economia, porque reduz o congestionamento, que tem um efeito perverso”, relata.
Coordenador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica, Maciel afirma que, mais do que novos corredores de ônibus, por exemplo, quem comandar São Paulo a partir do próximo ano precisa investir na gestão inteligente do sistema. “Falta integração entre os diferentes modais, bicicletários em quantidade suficiente para pessoas que usam a bicicleta integrada ao sistema e mais faixas exclusivas, além de baias de embarque e desembarque para integrar os terminais, metrô, ônibus com os aplicativos. Investimentos necessários, que não são caros, mas não dão marca a uma gestão.”
Com a pandemia de covid-19 e a adoção da quarentena em praticamente todo o mundo, uma lição ficou clara, ao menos para quem teve a oportunidade de seguir trabalhando em casa: evitar deslocamentos, reduzir a exposição à poluição do ar, gastar menos com vale-transporte é ter mais tempo com a família, menos risco de desenvolver doenças crônicas e ainda mais recursos para estudar, arrumar a casa ou custear um curso extra de formação.
Desde março, Pedro tem aproveitado a chance de ficar mais em casa para estudar. “Eu tenho uma rotina mais flexível, posso solicitar home office quando quiser. Como eu faço doutorado, grande parte do meu trabalho posso fazer de casa”, diz.
Na realidade de Vandersilva, porém, nada mudou. Faxina não se faz de forma remota, por isso, mesmo com os riscos, ela mantém a rotina cansativa do dia a dia. À noite, antes de dormir, a encarregada de limpeza já deixa o almoço do dia seguinte pronto.
O café da manhã, uma bolacha de sal ou doce e, às vezes, um pão na padaria próxima ao serviço, acaba ficando para mais tarde. Só por volta das 8h30, quando faz um lanche no condomínio onde trabalha.
A pontualidade, para ela, é essencial: um minuto de atraso na hora de sair de casa pode lhe render outros 30 de espera pelo próximo ônibus, que ainda tende a estar cheio. Pedro também é pontual, mas no caso dele, as chances de um contratempo são mais raras.
O percurso do pesquisador até o Hospital das Clínicas se dá por um trajeto seguro, com faixas de pedestre, semáforos e ciclovia – inexistentes na Vila Missionária. As calçadas estão em boas condições e com espaço suficiente para duas pessoas caminharem lado a lado.
Na volta do trabalho, o tempo que Pedro leva é o mesmo. Após 10 minutos de caminhada, dá para chegar em casa e fazer os serviços domésticos com tranquilidade. Já Vandersilva, quando entra em casa, por volta das 18h, tem de planejar bem o tempo para conseguir cumprir as tarefas e tentar descansar. Em pouco tempo começará tudo de novo.