Do Valor Econômico
Foto: Lucas Moura/Ônibus Brasil – Ilustração
As incertezas sobre quanto tempo o brasileiro terá de conviver com a covid-19 e a reabertura progressiva da economia impõem desafios aos serviços de transporte de massa e aos meios alternativos de deslocamento. Nesse quadro, tornou-se necessário atualizar frequentemente os protocolos sanitários e de operação. A pandemia reforçou ainda velhos problemas, como as dificuldades de acesso para quem precisa se movimentar diariamente entre casa e trabalho, que aprofundam desigualdades sociais. No setor privado, por sua vez, mais empresas passaram a recorrer ao serviço de companhias como a Uber e a 99 para transportar os seus funcionários.
Em grandes cidades, como São Paulo, os modais vêm se readaptando à retomada do fluxo de circulação de pessoas e aos alertas dos órgãos de saúde, rotina que refez cálculos para sair de casa. Com filas mais longas e regras de afastamento a seguir, o percurso pode levar mais tempo ainda, especialmente para quem mora fora do Centro expandido. Já em cidades como o Rio, onde os meios de transporte já eram precários para atender a parcela considerável da população, há risco de os sistemas entrarem em colapso. Concessionárias alertam que estão sem caixa e operam sob o risco de interromper o funcionamento.
A demanda de passageiros em São Paulo por ônibus intermunicipais (EMTU), trens convencionais (CPTM) e Metrô chegou a 20% no período de quarentena em relação ao movimento normal anterior à pandemia. Hoje está, na média, em 40% nas três empresas, segundo a Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos (STM). A estimativa de perda de receita é de R$ 1 bilhão nas três companhias, considerando todas as concessões e receitas não tarifárias.
A pasta afirmou que a Operação Monitorada é “avaliada ininterruptamente”. Quando necessário, mais trens comuns e de metrô entram em circulação para evitar aglomerações. “A oferta chega a 100% da frota em algumas linhas nos horários de pico, mesmo com a queda expressiva na demanda, em torno de 60%, em comparação com o funcionamento antes da pandemia”, detalhou.
Para Andreina Nigriello, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), os esforços para reduzir a propagação do novo coronavírus nos transportes de massa são medidas paliativas, e a pandemia apenas evidenciou a insustentabilidade de sistemas concebidos para falhar no futuro. “Há muito tempo já passou da hora de se repensar esses modelos”, disse a arquiteta urbanista, ao ser questionada sobre a eficácia das ações adotadas por gestores públicos e concessionárias para conter o avanço da doença.
“Temos um problema crônico nos transportes, e o indicador mais claro disso é o tempo de viagem das pessoas. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, boa parte dos usuários mora fora do Centro expandido e demora até mais de uma hora numa só viagem”, ressaltou ela.
Andreina disse que vias e transportes foram pensados para conduzir até o Centro, que acabou se tornando o local mais acessível do planalto paulistano. Ela ressaltou que a falta de conectividade entre bairros, com o deslocamento não atendido por linhas perimetrais, reflete políticas que não buscaram fortalecer polos de emprego em outras regiões – tampouco consideraram que a população cresceria tanto, caso também de outras metrópoles.
Nos trens comuns, um robô que pulveriza névoa de gotículas ionizadas de desinfetantes entrou em campo. A solução limpa e elimina microrganismos e partículas em suspensão, como bactérias, germes e vírus, diz a Secretaria de Transportes Metropolitanos, ao ressaltar que os produtos têm aprovação da Anvisa e da Organização Mundial de Saúde (OMS), por exemplo.
Na parte preventiva, além da higienização com materiais como a velha água sanitária e álcool a 70%, limpeza de veículos e estações, uso de equipamentos de proteção e campanhas, a secretaria informou que tem buscado inovações. Ainda aguardando resultado de testes, apontou um tecido especial que eliminaria a contaminação cruzada pelo novo coronavírus no contato por superfície. Se o desempenho for favorável, a ideia é adotar o revestimento nos trens convencionais, no Metrô e nos ônibus.
A São Paulo Transportes (SPTrans) informou que 3,3 milhões de pessoas eram transportadas, em média, por dia útil, nos ônibus municipais antes da pandemia. Hoje, a média está em 1,6 milhão. Segundo a empresa, a frota “é sempre muito superior à demanda de passageiros desde o início da pandemia”. O grupo local de distribuição – com ônibus menores, que atendem os bairros mais afastados da região central – opera hoje com 92,5% da sua frota para 53% da demanda. Já a frota total – estrutural, articulação regional e distribuição – opera com 85,85% para 52% de passageiros, com 11.001 veículos ao todo.
Em razão da redução da quantidade de passageiros e da oferta de ônibus acima da demanda após o início da quarentena, a prefeitura de São Paulo estima ampliação do subsídio em torno de R$ 1,5 bilhão sobre o valor previsto no orçamento de 2020 – de R$ 2,25 bilhões. A SPTrans também informou ter intensificado a higienização de terminais.
No Distrito Federal, a Secretaria de Transporte e Mobilidade informou que desde maio, início da reabertura gradual, os transportes públicos operam com 100% da frota, cumprindo tabela normal de viagens. Com atividades escolares ainda suspensas, ônibus destinados a setores em que o público é predominantemente de estudantes foram remanejados para reforçar linhas mais demandadas, como as que ligam o Plano Piloto às demais cidades.
Na avaliação de Luiz Carlos Néspoli, superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) – que representa segmentos da cadeia produtiva de mobilidade, como fabricantes de veículos, empresas de ônibus e de transportes sobre trilhos -, a pandemia acelerou a necessidade de repensar as políticas de transporte. Na sua visão, os modelos atuais são antíteses do desenvolvimento econômico.
“Há dois pontos essenciais para a viabilidade da mobilidade, embora boa parte das cidades no país ainda não tenha avançado nisso. Um é a adoção de faixas prioritárias para ônibus, o outro é construir estudos que permitam a reorganização das atividades, econômicas ou de prestação de serviços, a fim de achatar os picos de deslocamento”, observou.
O engenheiro afirmou que a saída quantitativa seria adicionar ônibus à frota que circula, já que metrôs e trens têm nesse aspecto capacidade de expansão limitada – mas não basta. “E isso também tem um custo, que não pode recair sobre as tarifas onerando usuários. As cidades brasileiras precisam acompanhar outros exemplos no mundo, onde a população arca com pequena parte apenas desse financiamento. É importante lembrar que os transportes servem às cidades e à economia”, ressaltou ele, ao ressalvar que São Paulo é exceção no quesito subsídio.
A ANTP adiantou ao Valor que vai lançar documento, por ocasião da disputa eleitoral, que reúne essas e outras propostas técnicas. “Temos que caminhar para novo produto de transporte, o que não será uma transição imediata, mas deve prever estímulos ao rearranjo de horários de funcionamento dos estabelecimentos e, dessa forma, do deslocamento de pessoas.”