Acessibilidade para todos os usuários de transporte

Do O Estado de SP
Foto: Ilustração/Arquivo – UNIBUS RN

O direito de ir e vir talvez seja um dos temas da Constituição brasileira mais conhecido. Popularmente é invocado por proprietários de automóveis em situação de bloqueio de vias ou restrições de circulação como as aplicadas por meio de rodízios de veículos. Para alguns brasileiros, no entanto, tal direito é limitado ou suprimido por fatores muito mais complexos do que regras de trânsito. São cidadãos para os quais as cidades e seus espaços são inacessíveis. Pesquisadores e instituições mostram como as razões podem variar conforme as condições de grupos sociais e fatores geográficos, ao mesmo tempo em que articulam ações para a promoção de uma acessibilidade realmente universal.

Uma analogia muito atual e universal explica o cotidiano do deficiente físico, por exemplo. “Ao analisarmos o isolamento social que fomos impostos como restrição de mobilidade, podemos inferir que a vida das pessoas com deficiência já é uma quarentena”, diz Bruno Mahfuz, sócio-fundador da empresa de tecnologia Guiaderodas, que desenvolve aplicativos e plataformas com informações sobre acessibilidade nas cidades.

A organização estimula empresas e instituições a adotarem práticas de acessibilidade ao deficiente na medida em que fornece certificações por meio de testes de funcionalidade dos espaços, realiza treinamentos e organiza campanhas de engajamento. “Para o universo com que lidamos, este momento que vivemos não alterou muito a rotina já vivida. O que mudou foi uma empatia e entendimento maior da sociedade com as pessoas que tem uma realidade permanente de restrições de mobilidade para desempenhar suas atividades diárias”, afirma.

Em São Paulo, as ações da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência esbarram na falta de informações precisas sobre os paulistanos com impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Para lidar com o problema, foi criado o Observatório Municipal da Pessoa com Deficiência, para coletar e analisar dados estatísticos e analíticos.

“Não dá para fazer política pública sem dados precisos. Não sabemos o número de cadeirantes da cidade, algo fundamental para saber que linhas de ônibus devem ter mais de um lugar para cadeiras de rodas ou oferta de transportes diferenciados como micro-ônibus com piso baixo”, afirma Cid Torquato, secretário do órgão.

Custo é o primeiro obstáculo

Para muitas pessoas, o principal fator que limita os deslocamentos nas cidades é o custo. O recém-lançado Mapa da Desigualdade 2020, estudo realizado pela organização Casa Fluminense sobre a região metropolitana do Rio de Janeiro, detalha como o peso financeiro de arcar com a mobilidade em grupos de baixa renda é excessivo, algo que piora para moradores de regiões periféricas.

“Pessoas que pegam 44 ônibus por mês, duas viagens por dia em cada dia útil, podem chegar a gastar mais de um terço da sua renda só com os ônibus municipais da sua cidade. Isso sem contar as despesas com deslocamentos intermunicipais, que são frequentes nas regiões metropolitanas, especialmente nas periferias das metrópoles”, explica Guilherme Alves, pesquisador da Casa Fluminense e coautor do estudo.

Com esse custo exorbitante para o deslocamento entre a casa e o trabalho, o direito de ir e vir para por aí. Um contingente populacional enorme não tem acesso a passeios com fins de lazer, confraternização entre amigos e familiares ou visitas a equipamentos culturais das cidades.

Os gestores do transporte público são criticados por desconsiderar essa necessidade de cidadãos se deslocarem para ambientes que não sejam laborais. As viagens de moradores de periferias durante seu tempo livre são restritas por razões operacionais, afirma Victor Del Rey, presidente da Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada (Guetto). “Nos fins de semana, que são os momentos de lazer dessas pessoas, se vê menos oferta de ônibus e necessidade de mais baldeações nos transportes sobre trilhos, o que torna mais demorado ir à praia ou chegar ao centro, onde tem oferta de museu”, diz.

Com tantos obstáculos, de fato a pessoa termina desestimulada a sair de casa. E, consequentemente, o transporte coletivo circula mais vazio nos fins de semana. O que corrobora a decisão de continuar com os intervalos prolongados. Um círculo vicioso que só terá fim se houver uma interlocução eficaz entre poder público e usuários. Do jeito em que a mobilidade está, vive-se um completo vácuo de representatividade, aponta Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (Cufa). “Muitas vezes, quem ocupa a secretaria de transportes é escolhido por grupos empresariais do setor. O primeiro desafio é democratizar o controle social e a participação do usuário. Estamos falando da perspectiva de alguém que mobiliza uma economia, que mantém as empresas de transporte. Nada mais justo e democrático que os usuários, como geradores de riquezas, façam parte da gestão”, pondera.

Projetos também para crianças

Quem dá passos curtinhos ou engatinha também tem direito a ir e vir. A National Association of City Transportation (Nacto), associação de mobilidade que agrega 81 cidades dos Estados Unidos, acaba de lançar o guia Designing Streets for Kids (Projetando Ruas para Crianças), apontando o que o espaço urbano deve ter para acolher os pequenos. Deve proporcionar estruturas seguras para que as crianças exerçam sua autonomia (como calçadas e ciclovias seguras em ruas com veículos em baixa velocidade), lugar para descanso, trocadores e bebedouros.

O projeto urbanístico deve ainda inspirar diversão e aprendizado. A publicação apresenta intervenções em Amsterdã, Moscou, Chicago e Madri, entre outras cidades. Há exemplos do Brasil, como o projeto Olhe o Degrau, que revitalizou uma escadaria perto de escolas no Jardim Ângela, na periferia de São Paulo. A área ganhou cores, bancos, mesas de piquenique e iluminação. Resultado: aumentou em 40% a frequência de crianças.

Ciclovias de Boa Vista: de 0 para 40 km

Quando se reelegeu em 2016, a prefeita Teresa Surita (MDB) estabeleceu como meta ir de 0 a 40 quilômetros de ciclovias em Boa Vista no menor tempo possível. Em três anos, conseguiu: já é a sexta capital com mais quilômetros de ciclovia por habitante, com 1 quilômetro para cada 9.326 moradores. “Temos uma cidade plana e com avenidas largas. Já era um grande potencial cicloviário”, diz Teresa. Atualmente, os resultados se veem na diminuição de mortes de ciclistas e no aumento de pessoas que passaram a pedalar. Saiba mais sobre esse case:

O que motivou as ciclovias?

Assumi meu segundo mandato com a intenção de transformar a cidade na questão da mobilidade e de buscar saídas sustentáveis, como aproveitamento de energia solar por estarmos acima da Linha do Equador, na qual o sol é escaldante. Começamos a desenvolver o projeto das ciclovias em 2016, e o início da implementação veio em 2017. Foi um trabalho de requalificar o urbanismo: aspecto viário, calçadas, trânsito, sinalizações. Planejamos ligar bairros distantes, integrar o centro a regiões próximas ou afastadas. Pensamos em ciclovias com espaço para duas bicicletas, uma ao lado da outra. Decidimos 1,20 metro de largura em vias menores e 2,20 metro nas maiores, todas com segregação para que carros não invadam. Temos uma cidade plana, com diferenças de altitude de 10 metros, e largas avenidas. Já era um grande potencial cicloviário. Partimos de nenhuma ciclovia para 40 quilômetros prontos e mais dois até o fim do ano.

Quais são os principais resultados do plano cicloviário?

Em relação à segurança, tivemos redução de 33% nas mortes de ciclistas entre 2019 e 2010. Passamos a ver mais grupos de ciclistas e de corrida. Os negócios ligados a bicicletas expandiram 40% nos últimos anos, com empresários investindo em vendas de bicicletas e serviços voltados aos ciclistas. Houve também fomento do turismo, com oportunidade de negócios com rotas para apresentar a cidade.

E quais são os benefícios para quem não é ciclista?

Investir nas ciclovias foi também uma forma de renovar a vida urbana. As cidades precisam de um aproveitamento de seus espaços. Agora é comum ver pessoas fazendo piqueniques em praças, grupos pedalando a altas horas. Se uma avenida nova for proposta, vem a cobrança para que tenha ciclovia. Temos o estímulo à convivência: vemos crianças com seus pais se locomovendo de bicicleta. Com a pandemia, no entanto, o sucesso dessas iniciativas foi justamente o que nos obrigou a refreá-las. Para evitar aglomerações, tivemos de desligar as lâmpadas em regiões da cidade para desestimular a ida das pessoas.

Em cidades como São Paulo e outras do País, há grupos contrários às ciclovias, como alguns comerciantes ou moradores. O plano de Boa Vista também sofreu resistência?

No início tivemos comerciantes reclamando, achando que iam perder o movimento em suas lojas com as ciclovias passando em frente a suas portas. Parte da população achava que o trânsito iria piorar com ruas mais estreitas. Nada disso aconteceu e atualmente tenho requisições de comerciantes e moradores por ciclovias em suas ruas. Elas viraram um marco da cidade.

Alex Gomes e Ocimara Balmant, Especiais para o Estado

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