Do UOL – Ecoa
Foto: José Augusto/Ilustração
O que acontece quando um sistema fundamentalmente financiado por tarifa é atingido pela quarentena? O transporte público nas cidades brasileiras, como é hoje, arrastava sua inegável crise há tempos. A conjuntura o obrigou a olhar-se no espelho. Para os debatedores da quinta mesa do ciclo “Novas Cidades 2021”, promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR) e transmitido por Ecoa, o reflexo é de um sistema de financiamento ineficaz, um modelo de negócio em colapso e a necessidade inadiável de planejar desde vias até fontes de recursos.
“Mobilidade é inclusão. O tema de nosso debate de hoje é mobilidade na cidade, mas também na sociedade. Porque um é condição para outro”, afirmou Carlos Eduardo Nunes Ferreira, presidente da ABEA (Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo). A questão foi ampliada por Leticia Bortolanza, arquiteta urbanista e gerente de políticas públicas do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento). “É fundamental que a mobilidade seja vista não apenas como de deslocamento entre pontos de trabalho, mas como forma de facilitar inacesso da população de chegar aos destinos que ela deseja, e que nem sempre é só o trabalho. São vários os destinos desejados, e pra acessar serviços e oportunidades a gente precisa olhar a mobilidade como meio, como forma de acesso”, diz.
Apesar de o tema do debate, “Mobilidade e inclusão” ser bem mais amplo do que a discussão sobre modais coletivos, o momento de crise aguda torna inevitável que essa abordagem seja feita com urgência.
“Chegamos a um ponto no Brasil em que estamos reféns de um debate sobre como sustentar a tarifa do sistema de transporte, e como atender a uma demanda reprimida, porque em algum momento houve uma falha no processo de planejamento e de ocupação do espaço urbano”, afirma o deputado Gustavo Fruet (PDT/PR).
O financiamento do sistema, explica Henrique Silveira, geógrafo e coordenador da Casa Fluminense, é um problema de origem que agora encontra um bom momento para ser reavaliado. Isso porque o transporte público brasileiro é, em larga escala, financiado pela tarifa. “Isso é um problema, porque haverá sempre uma pressão para passageiro subir. Outro problema é a forma de remuneração do setor, que é em grande medida pelo número de passageiros, e não, por exemplo, pelo custo da operação. Novamente uma pressão um processo que estimula superlotações”.
Esse modelo problemático de saída encontra agora uma realidade em que os passageiros, simplesmente, estão em casa. “Se você só financia quando gira a roleta, como faz quando cai a receita? Aqui no Rio, por exemplo, caiu para 40% o número de passageiros”, conta Henrique.
Assim como Gustavo, ele acredita que deve haver um repasse do governo federal no subsídio desses transportes, assim como no modelo norte-americano e na maior parte dos países europeus.
Graças a esse modelo extra-tarifário, entre outras coisas, a questão de pandemia é abordada de maneira diferente em cada lugar. A advogada Martha Gutierrez, da rede SIMUS de mobilidade urbana, trouxe diversos exemplos de medidas para transportes biosseguros em toda a América Latina.
“No mundo todo, os países aportaram recursos na mobilidade urbana (na pandemia). Muitos já têm um sistema de financiamentos extra-tarifários, o que facilita a chegada dos recursos”, explica Henrique Silveira. “E aí o debate passa a ser mais focado na higienização do sistema, enquanto aqui o debate é que o sistema vai quebrar porque não tem passageiro pagando a passagem”.
Há pelo menos dois projetos de lei tramitando no Congresso discutindo formas de auxílio emergencial à mobilidade na pandemia – que variam em grau de complexidade das contrapartidas exigidas de um setor notoriamente pouco transparente. Eles abrem as portas para a discussão mais ampla defendida pelos especialistas.
“Não adianta simplesmente aumentar tarifa”, diz Gustavo sobre o modelo de negócio que ele acredita falido.
“Quando a gente aumenta a tarifa, o passageiro que não tem renda vai a pé ou de bicicleta, mesmo que seja um grande deslocamento. Quem tem renda usa um aplicativo, que em muitas cidades compete com o valor da tarifa, ou compra um carro. Essa fuga de passageiros significa cada vez menos recurso e menos qualidade, com uso restrito para a população mais pobre” – Henrique Silveira, geógrafo e coordenador da Casa Fluminense
As ideias para novos modelos de financiamento são inúmeras. “O transporte individual precisa financiar o transporte coletivo”, diz Henrique. Já Gustavo propõe uma política em que os recursos do vale-transporte sejam integralmente destinados ao sistema. Ambos defendem repasses federais.
A partir daí, um planejamento. “É fundamental que a mobilidade seja vista não apenas como de deslocamento entre pontos de trabalho, mas como forma de facilitar o acesso da população, de chegar aos destinos que ela deseja, e que nem sempre é só o trabalho”, diz Letícia. “São vários os destinos desejados, e para acessar serviços e oportunidades a gente precisa olhar a mobilidade como meio, como forma de acesso”.