Da Folha de SP
Foto: Detran-PR – Ilustração/Fotos Públicas
Quando a estudante gaúcha Dora Leonetti completou 18 anos, preferiu gastar o dinheiro da auto-escola em uma viagem. Hoje, aos 23, ainda não aprendeu a dirigir. “Não vale a pena, é muito caro tirar carteira e manter um carro”, resume.
“Já fiz a conta e teria que me locomover muito mais do que eu me locomovo para ver vantagem. Passo um pouco de perrengue esperando ônibus, sim, porque o transporte em Porto Alegre não é o ideal, mas não é o suficiente para me fazer querer ter um carro. É só organizar a rotina”, diz ela, que, além do transporte público, também usa aplicativos como o Uber.
Jovens como Leonetti têm ocupado um espaço menor no universo de motoristas brasileiros, mostram dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), que revelam ainda que idosos têm dirigido mais.
O número de carteiras de habilitação válidas no Brasil cresceu 38% na última década, saltando de 53,9 milhões de CNHs (Carteira Nacional de Habilitação) em 2011 para 74,3 milhões em 2020, segundo os dados do governo, muito acima da população do país, que cresceu 10% no mesmo período.
Especialistas apontam que a alta no número de motoristas pode ter se dado, no começo da década, pela bonança econômica e por medidas de incentivo ao setor automotivo, como a redução do IPI (imposto sobre produtos industrializados).
O número de habilitações crescia a mais de 5% ao ano até 2014. A partir de 2015, quando o país entrou em recessão econômica, esse aumento se desacelerou. Entre 2018 e 2019, o crescimento foi de 2,9%.
Nesses dez anos, a proporção de condutores com mais de 61 anos saltou de 11% para 17% no universo de motoristas do país. Ao mesmo tempo, caiu de 29% para 21% a parcela dos motoristas com até 30 anos.
A goiana Laura Teixeira, 22, diz que não vê sentido em ter um automóvel agora. “Não tenho vontade nenhuma de me estressar no trânsito”, afirma ela. “Uma vez sofri um acidente, então tenho um pouco de medo. E as pessoas parece que estão mais agressivas, fico pensando que se eu buzinar para alguém, o cara pode me dar um tiro”, relata.
“Seria até bom para visitar meus pais no interior, mas hoje em dia tem aplicativos de carona, além de Uber e 99. E o processo inteiro de tirar a habilitação me parece muito chato. quando eu vou analisar, tem mais contras do que prós”, diz ela, que não vai comemorar o dia do motorista —a data é celebrada neste sábado (25), dia de São Cristóvão, santo católico padroeiro dos condutores.
Esse movimento acontece em todas as regiões do Brasil, segundo os números do Denatran, e também é identificado por pesquisadores em outros países do mundo.
Análise do Instituto Ipsos feita com dados da CNH de 2013 e 2019 (e que serviu de ponto de partida para este levantamento feito pela Folha) aponta para algumas hipóteses.
Já um aumento na longevidade dos idosos e a presença de tecnologias assistivas como câmera de ré, sensor de estacionamento e câmbio automático facilitam que os mais velhos continuem dirigindo, segundo a análise do Ipsos.
A mudança de comportamento capitaneada pelos jovens da chamada “geração canguru”, que demoram mais a se emancipar dos pais aliada à praticidade de aplicativos como o Uber, que baratearam o serviço de táxi, ajudam a explicar o desinteresse dos jovens pela CNH, diz o instituto.
Para a urbanista Kelly Fernandes, especialista em mobilidade urbana do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), houve aumento da infraestrutura de transporte nos últimos anos em regiões mais centrais, com corredores de ônibus e ciclovias, que podem ter convencido uma parcela dos jovens que não é tão importante ter um carro.
Mas há outro fator: “A posse do carro é muito cara. Além do custo de aquisição do bem, que é alto, tem manutenção, depreciação, combustível, estacionamento. E o custo da CNH cresceu”, diz ela.
“É sempre bom olhar isso com um recorte de renda. Para os jovens das periferias, a posse do carro pode potencializar a liberdade e a autonomia, o carro possibilita que eles experimentem a cidade, porque onde moram a infraestrutura de transporte é muito ruim.”
E aí também entram os aplicativos de transporte. “Têm um custo mais baixo do que o do táxi, e é usado também pelos estratos mais pobres da população”, afirma.
Estudiosos da área afirmam que, com a pandemia do novo coronavírus, é provável que o carro tenha mais apelo para a população.
A participação de mulheres entre motoristas também cresceu na última década. Fernandes aponta uma possível relação com a violência urbana: as mulheres se sentiriam mais seguras dentro do automóvel.
Além disso, diz, há a dinâmica familiar: “As mulheres tendem a ter um padrão de deslocamento diferente, porque têm mais responsabilidade na manutenção da vida familiar. Não fazem só o deslocamento trabalho-casa, mas têm que ir ao mercado e pegar os filhos na creche, entre outras coisas, e nisso o carro pode ser um aliado, principalmente quando o sistema de transporte coletivo e a cidade não colabora”, afirma a especialista.
Os dados das CNHs mostram ainda que, mais do que motoristas, há automóveis. No Brasil, são quase 106 milhões de veículos automotores, uma média de 1,4 para cada motorista.
Os estados do Piauí e Maranhão são os com mais automóveis por habitante. Já o Distrito Federal é a unidade federativa com menos carros por motorista —apesar de suas largas avenidas e de ter sido planejada tendo o carro como principal meio de locomoção.
Acre, Amapá e São Paulo, o estado mais populoso do país, vêm na sequência, com um número menor de automóveis por condutor.