Da Gaúcha ZH
Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília – Ilustração/Fotos Públicas
No longínquo mundo pré-pandemia, quando congestionamentos entupiam ruas e avenidas de cidades, o automóvel perdia seu protagonismo no sistema de mobilidade urbana. Mas apareceu o coronavírus e, pela necessidade de distanciamento, o carro particular recuperou prestígio como aliado para manter o isolamento.
Pressionados pelo risco de contágio, prefeitos país afora desestimulam o uso do transporte público lotado, causando onda migratória para o automóvel. Em Porto Alegre, índices de mobilidade sugerem que quem pode está dando preferência à utilização do carro ao invés do ônibus em seus deslocamentos.
Mesmo com maioria das atividades econômicas suspensa, o movimento de veículos na Capital caiu, em média, 20% nos últimos quatro meses. Já a quantidade de passageiros nos coletivos despencou 80%, de acordo com dados medidos pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC).
— Comparando a queda na demanda do transporte público com a circulação de carros, podemos inferir que o uso de automóveis aumentou. Afinal, o número de estabelecimentos abertos diminuiu, muitas pessoas estão trabalhando de casa, e, mesmo assim, os índices se mantêm muito próximos aos de dias úteis tradicionais — afirma Rodrigo Tortoriello, secretário de Mobilidade de Porto Alegre.
Para o secretário, a atual tendência do carrocentrismo está relacionada à sensação de blindagem ao vírus suprida pela lataria do automóvel. Promovido a uma espécie de armadura sobre rodas contra a covid-19, o uso do veículo particular também abriu série de possibilidades comerciais e culturais, direcionadas à camada mais rica da população.
Nas maiores cidades do Estado, popularizam-se os atendimentos por drive-thrus durante a pandemia. Antes restritos às grandes redes de fast-food, o atendimento a clientes dentro de seus carros apresentou-se como uma alternativa para comércio de rua e shoppings. Até laboratórios aderiram ao sistema, aplicando testes de coronavírus e vacinas contra a gripe.
— Pensando no consumidor e na forma como se sentiria mais seguro, nos adaptamos para que nossa operação não parasse. É uma atividade inaugurada pela pandemia, mas que, acredito, pode ter vindo para ficar — diz Angela Sosa, gerente de marketing do Shopping Praia de Belas, que implementou um drive-thru em seu estacionamento.
Pelo mercado, surgem acenos de que o transporte individual ganhará ainda mais preponderância nos próximos meses, especialmente em cenário sem uma vacina contra o coronavírus — uma dinâmica que já preocupa gestores municipais, engenheiros de trânsito e urbanistas. Abatido pela crise, o mercado de automóveis deu sinais de recuperação no mês passado.
Segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), a venda de carros novos aumentou quase 117% em junho no país na comparação com maio. Um estudo do Instituto Ipsos, empresa de pesquisa de mercado, realizado na China, também animou as montadoras. O levantamento indicou que 66% dos chineses que não possuem um automóvel estão dispostos a adquiri-lo devido ao receio de contaminação em ônibus, trens e metrôs — pré-pandemia, esse índice era de 34%.
— Havia, antes, um movimento de sustentabilidade falando mais alto e deixando o carro de lado. Agora, ele está se tornando um item essencial para várias atividades e desempenhando outros papéis, até de entretenimento — analisa Mariana Gutheil, CEO da consultoria de tendências No One.
O campo cultural, paralisado em razão das medidas de distanciamento social, também incorporou o uso de automóveis para sobreviver à crise, ressuscitando os drive-ins de cinemas e espetáculos. Desde o mês passado, quando assistiu ao show da banda Chimarruts em um estacionamento ao lado do Beira-Rio, a pedagoga Fernanda Andrade adotou o evento como tradição da família durante a pandemia.
Há três sábados, acompanhada do filho, Léo Henrique, e do marido, Leonardo, além dos pais, Moisés e Ivoneti, Fernanda tem ido a concertos dentro do seu próprio veículo. Mantidos em isolamento em seus apartamentos, situados em um mesmo prédio na Avenida Protásio Alves, os Andrade encontraram, no drive-in, um momento de descontração livre de riscos.
— É uma nova forma de socialização, com a sensação de estarmos protegidos dentro do carro, mas, ao mesmo tempo, próximos de outras pessoas. É uma situação muito dicotômica — conta a pedagoga.
Infectologista da Santa Casa de Misericórdia, Cláudio Stadnik assegura que, dentro de um automóvel, as chances de contaminação são praticamente nulas — afinal, o contágio acontece apenas a partir do contato com outras pessoas. O médico salienta, contudo, a necessidade de manter o álcool gel como acessório de primeira necessidade, usando sempre que um item externo transpassar a janela.
— O uso do carro individual diminui o risco de contágio, mas é preciso continuar com as medidas de prevenção. O grande risco é se sentir seguro demais e acabar esquecendo, por exemplo, de higienizar as mãos — orienta Stadnik.
A reinvenção do drive-in
Na reinterpretação do uso do automóvel, os drive-ins apresentam-se como uma das principais novidades, retomando modelo bem-sucedido de décadas passadas. Para adequar-se à pandemia, produtores tiveram de estruturar rígido protocolo para assegurar que ocupantes de um veículo mantenham distância de quem está em outro. Atualmente, há dois driveins em funcionamento na Capital – um no estacionamento do aeroporto Salgado Filho e outro no da EPTC, ao lado do Beira-Rio.
— Se você sai para passear de carro, as pessoas que estão dentro do veículo são as mesmas pessoas que estão em isolamento contigo dentro de casa. Então, de certa forma, o automóvel, neste momento pandêmico, acaba sendo uma extensão do lar — avalia o proprietário da Best Entretenimento, Pinheiro Neto, produtor do POA Drive-in Show.
O setor cultural discute se o uso do automóvel para o entretenimento será passageiro ou irá se consolidar a longo prazo. A sua longevidade, para Vinícius Garcia, sócio-diretor do Grupo Austral e responsável pelo Drive-in Air Festival, está diretamente relacionada ao desenvolvimento da vacina contra a covid-19.
Embora satisfeitos, frequentadores manifestam saudades do modelo tradicional. O jornalista Vitor Hugo Furtado, morador de Novo Hamburgo, tinha o costume de ir ao cinema, ao menos, uma vez por semana. Esteve em um drive-in recentemente e, mesmo aprovando a experiência inédita, sentiu falta da sala escura:
— Do ponto de vista do que poderia ser feito pela organização, me senti muito seguro, sim. Mas a verdade é que estou louco que isso tudo acabe.
Este movimento de dependência do carro também tem sido debatido pelo mercado automotivo, que vinha preocupado pelas pesquisas apontando o desinteresse de jovens no investimento. O economista Raphael Galante, consultor do ramo, assinala que a adesão das empresas ao home office no pós-pandemia irá direcionar os rumos do setor.
— Hoje, o carro voltou a ter uma importância que não tinha anos atrás. Mas tudo na economia é cíclico. Tudo indica que o home office será mais enraizado e, se isso se confirmar, daqui a alguns anos, menos gente precisará de um — observa Galante.
Também consultor automotivo, Milad Kalume Neto adiciona à equação outro componente — a crise econômica e o desemprego que irá se instalar no país:
— Aí, as pessoas pensam: será que vale a pena me enfiar em um financiamento para a compra de um veículo? Terei disponibilidade financeira para arcar? Isso também entra nesta conta.
Espaço urbano à beira do colapso
Impulsionado pela pandemia, o incentivo ao uso do veículo individual, relacionado à crise do transporte coletivo, acendeu um alerta preocupante para especialistas em mobilidade urbana. O perigo, a partir da retomada das atividades econômicas, está no colapso do trânsito, no aumento da poluição e no enraizamento das desigualdades sociais.
Isso porque, enquanto a população mais abastada pode se deslocar segura dentro de seus automóveis, aqueles que não têm as mesmas condições se amontoam em paradas e ônibus lotados.
— É uma demanda exclusivista. Se todas as pessoas se deslocassem de carro, ninguém se moveria um centímetro. Não existe espaço urbano que comporte. É uma solução na qual alguns podem se proteger, enquanto outros vão para o matadouro — critica o urbanista Roberto Andrés, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O secretário extraordinário de Mobilidade de Porto Alegre, Rodrigo Torniello, afirma que a saída passará, invariavelmente, pelo estímulo ao uso do transporte público, garantindo a segurança para os passageiros, e pela busca de uma solução para seu financiamento no país:
— Há uma preocupação de que tudo o que temos lutado para minimizar nos últimos anos tenha um agravamento por conta da pandemia. Então, faz-se ainda mais necessário priorizar o transporte público, dando mais eficiência na operação, para que o cidadão que anda de ônibus não pague o custo desse aumento do uso do transporte individual.
Responsável pelo setor de inovação da empresa de ônibus Marcopolo, Petras Santos tem se dedicado ao desenvolvimento de tecnologias para garantir a biossegurança dos coletivos. Para ele, ainda é prematuro afirmar que o carro irá se consolidar como o meio de deslocamento preponderante após a crise.
— Não dá para termos apenas um protagonista. Se retrocedermos, por causa da pandemia, para o transporte individual, irão retornar outros problemas de ocupação do espaço público. E já conhecemos as consequência de um único modal — afirma Santos.
Países europeus e também os Estados Unidos têm buscado alternativas para escapar da carro-dependência. As iniciativas internacionais, em cidades como Nova York e Paris, apontam para o aumento do espaço destinado a pedestres, limitando o lugar de estacionamentos, e o investimento em ciclovias.
— O carro pode soar como uma solução emergencial, mas as cidades não podem aceitar nem se pautar por isso. Não há mais espaço para estimular o seu uso. Mesmo com a pandemia, ele não será a solução — aposta Rafael Calabria, integrante do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito de São Paulo e coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Protocolos e cuidados dentro do seu carro
No interior do veículo, se você estiver apenas com pessoas do seu convívio domiciliar, infectologistas afirmam ser desnecessário o uso de máscara
No entanto, ao sair do veículo para alguma atividade ou mesmo ao manter contato com um atendente de drive-thrus ou drive-ins, por exemplo, coloque a máscara no rosto e, ao retirá-la, guarde em um local higienizado, como um saco plástico
Mantenha as mãos limpas e o álcool gel sempre à vista, de preferência, no console do veículo. Sempre que algum item de fora entrar no carro, como uma embalagem ou um alimento, descarte o que for preciso e, depois, higienize as mãos
Evite dar caronas para pessoas que não estão mantendo o distanciamento social com você, em sua casa. Se necessário, em uma eventual urgência, mantenha as janelas abertas, para ventilar o ar, e coloque máscara.