No Seminário Nacional realizado, este ano, pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, o tema de um dos painéis foi a “Modernização do Marco Regulatório do Transporte Público”, com ênfase na necessidade de inovar e oferecer um serviço de transporte coletivo mais flexível e de melhor qualidade, num ambiente altamente regulado por rígidos contratos de concessão.
O Professor Marçal Justen Filho, convidado para fazer uma apresentação sobre o tema, discorreu sobre o colapso da regulação dos transportes públicos, a necessidade de reconfigurar o serviço público e de substituir o “serviço público” por “obrigações de serviço público”, bem como discutiu a preservação da competência regulatória, a ampliação da livre competição e a universalidade dos serviços. Concluiu sua brilhante apresentação, sugerindo a superação dos modelos mentais, a necessidade de enfrentar a realidade e a adequação dos institutos jurídicos aos novos tempos, com a prevalência dos valores essenciais.
A Constituição Federal, as Constituições Estaduais, as Leis Orgânicas dos Municípios, a Lei Federal Nº 8.666/93 (Lei das Licitações), a Lei Federal Nº 8.987/95 (Lei das Concessões), a Lei Federal Nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade), a Lei Federal Nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), a Lei Federal Nº 12.529/11 (Lei Antitruste), a Lei Federal Nº 12.587/12 (Lei da Mobilidade Urbana), a Lei Federal Nº 12.846/13 (Lei Anticorrupção), a Lei Federal Nº 13.089/15 (Estatuto da Metrópole), a Lei Federal Nº 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), a Lei Federal Nº 13.303/16 (Estatuto da Empresa Pública) e suas alterações, complementadas pelas leis estaduais e municipais pertinentes, constituem a chamada “legislação aplicável” aos transportes públicos. Não precisa ser nenhum especialista da área jurídica para concluir que uma verdadeira miscelânea de leis, decretos, resoluções e portarias precisa ser observada por ocasião da elaboração dos editais de licitações e dos contratos de concessão.
Vale citar ainda que, mesmo depois de 2015, quando o transporte passou a fazer parte dos direitos sociais, previstos no Art. 6º da Constituição Federal, muito pouco se fez para consolidar o direito do cidadão, o dever do Estado e o papel das empresas operadoras, no âmbito dos transportes públicos.
“Marco Regulatório”, por demais sabido, é o conjunto de normas, leis e diretrizes que regulam o funcionamento dos setores, nos quais agentes privados prestam serviços de utilidade pública, por delegação. Entretanto, como não há um marco regulatório específico para o setor, cada estado ou cidade estabelece as suas próprias regras para a concessão dos serviços de transporte de passageiros, gerando uma verdadeira balbúrdia nos direitos e obrigações dos poderes concedentes e das empresas concessionárias.
Em alguns casos, o aparato jurídico sobre o qual deve se apoiar o processo licitatório e, por consequência, os contratos de concessão, é falho, dúbio e não estabelece base jurídica suficientemente sólida para resistir, inclusive, aos ataques de judicialização no setor. Em outros, a legislação aplicável cria tantos embaraços e amarras que só dificulta a contratação e, posteriormente, a gestão dos contratos de concessão.
Um dos mais respeitados técnicos do setor, Adriano M. Branco, falecido em dezembro do ano passado, em detalhado artigo intitulado Concessão dos serviços de utilidade pública no Estado de São Paulo, publicado pela Revista dos Transportes Públicos – ANTP, em 1997, cita o Prof. Luiz de Anhaia Mello que, ao buscar uma conceituação abrangente que permitisse melhor compreender o papel do Estado no exercício ou no controle de serviços essenciais à população, cunhou uma frase que ficou célebre: “A noção de que serviço público é um conceito fixo com conteúdo variável”. Tal definição abre espaço para a compreensão de muitas formas de prestação de serviços de interesse coletivo e a possibilidade de fixação do objeto dos contratos de concessão de forma a permitir mais flexibilidade e adaptação às condições impostas pela realidade dos novos tempos.
A título de exemplo, no caso da recente licitação realizada em São Paulo, teria sido muito mais oportuno definir o objeto da licitação como “delegação, por concessão, da prestação e exploração de serviços de mobilidade, na área do transporte coletivo público de passageiros, na cidade de São Paulo”. Esse seria, extrapolando o pensamento do Prof. Anhaia Mello, o “conceito fixo”.
Na abrangência ou no detalhamento do objeto do contrato, entretanto, teria sido, certamente, mais conveniente e adequado determinar um escopo básico e contar com a possibilidade da prestação e exploração de serviços, a serem definidos e especificados pelo Poder Público, à sua conveniência e necessidade. Em outras palavras, o Poder Público ficaria com a prerrogativa e flexibilidade, para ajustar o contrato, se necessário, à chegada de novas tecnologias ou de novos meios de deslocamento da população. Em outras palavras, seria como estabelecer um escopo de trabalho com “conteúdo variável”.
Infelizmente, a maioria dos técnicos responsáveis pela elaboração de editais de licitação não consegue entender essa nova realidade e, muito menos, tem a preocupação de definir o objeto da licitação e do contrato de concessão de forma a permitir um escopo de trabalho ajustável e modulável. Essa condição se impõe, hoje, no mínimo, para enfrentar futuras situações que podem colocar em risco a própria prestação dos serviços a serem contratados.
A ausência de um entendimento preciso e de uma compreensão mais abrangente sobre o momento atual em que se insere a prestação dos serviços de transportes de passageiros demonstra falta de visão estratégica e pouca preocupação com a gestão do contrato de concessão. Aqui vale o ditado às avessas, ou seja, “não se mexe em time que está perdendo”.
De qualquer forma, a situação vigente do transporte público, com a concorrência predatória provocada pelas novas tecnologias, em especial pelo transporte por aplicativos, já apresenta preocupações e abordagens que não devem ser tratadas pelos métodos tradicionais. Nesse condão, poder concedente e concessionárias precisam encontrar meios para enfrentar os problemas atuais, utilizando ou não as regras dos contratos existentes, sob pena de se verificar, em curto prazo, o domínio e a supremacia dos transportes individuais e desregulamentados sobre o transporte coletivo concedido.
As discussões e os debates havidos no painel “Modernização do Marco Regulatório do Transporte Público” levantaram pontos importantes para a reflexão e para a elaboração de propostas para um eventual modelo de regulação do setor. Segundo o Prof. Marçal, é preciso enfrentar os atuais desafios, evitando o saudosismo, com a ilusão da possibilidade do retorno ao passado, e, ao mesmo tempo, o futurismo, que confere tratamento utópico aos problemas futuros.
A criação de um marco regulatório, abrangente e detalhado, para atender à maioria das necessidades do transporte público, não parece ser a melhor ferramenta legal a ser utilizada para resumir, condensar e atualizar a legislação que serve de base jurídica para a elaboração dos processos licitatórios. Seria muito difícil propor um instrumento legal, de abrangência nacional, que não interferisse na autonomia dos estados e municípios, nos termos dos parágrafos 1º e 3º do Artigo 25 e inciso V do Artigo 30, da Constituição Federal, respectivamente.
Mas, há que se considerar que toda a legislação federal, estadual e municipal, aplicável e não concorrente, poderia fazer parte de um regulamento geral, de tal forma que os entes da Federação pudessem lidar com a complexidade de uma situação que não tem, ainda, todas as variáveis perfeitamente definidas, transformando concorrência desleal e predatória em serviços regulados e regulamentados, disputa e divisão de mercado em serviços alternativos e complementares, bem como ameaças e riscos em oportunidades e segurança jurídica.
Por Francisco Christovam
Fonte: ANTP