Na manhã de uma quinta-feira de 2017, um aposentado de 64 anos atravessou uma rua em Bom Jesus dos Perdões, cidade a 76 km de São Paulo, com cerca de 20 mil habitantes. Um motorista que conduzia seu carro ladeira abaixo naquela rua disse não ter visto quando o pedestre “surgiu” na sua frente. O aposentado foi atropelado e morreu naquele dia.
Foto: Silva Júnior/FolhaPress |
Cenas como essa se repetem todos os dias no trânsito brasileiro, pulverizados pelo território nacional. E, segundo uma pesquisa da Universidade Federal do Paraná em parceria com o ONSV (Observatório Nacional de Segurança Viária), as cidades brasileiras de pequeno porte (com até 100 mil habitantes) concentram praticamente a metade das vítimas de trânsito no país (49%).
O dado é alarmante, já que nelas residem 43% da população –além de terem menor frota de veículos e fluxo de viagens. Essas cidades também estão mais longe de cumprirem as metas nacionais de redução de mortes.
Os dados são do SUS de 2017, que apontam a ocorrência de 35.367 mortes no trânsito em todo o território brasileiro. Para o ONSV, falta maior compromisso das prefeituras de municípios de pequeno porte com o tema.
Para efeito de comparação, cidades grandes (que têm mais de 500 mil habitantes) concentram 30% da população brasileira, mas respondem por 23% das mortes no trânsito. Nas cidades médias (entre 100 mil e 500 mil habitantes), há maior equilíbrio entre os dois parâmetros: nelas residem 26% da população do Brasil e morrem 28% das vítimas do trânsito brasileiro.
Em 2017, entre as cidades pequenas com grande número de mortes estão, por exemplo, Lagoa dos Três Cantos (RS), onde apenas uma colisão frontal entre dois veículos numa rodovia estadual que cruza a cidade matou cinco pessoas.
O município, de apenas 1.650 habitantes, viu seu índice de mortalidade no trânsito explodir.
A presença de rodovias federais e estaduais em muitas cidades pequenas brasileiras influi no índice de mortes a cada grave acidente.
Só nas rodovias federais, é possível dizer que ocorreram 23% das 17.343 mortes das cidades pequenas.
O excedente fica ao custo das vias estaduais e também das próprias prefeituras, que têm responsabilidade sobre seu trânsito local.
É o caso, por exemplo, de Barra do Turvo (SP), onde dois jovens (um deles menor de idade) morreram em um acidente de motocicleta numa via de terra, na cidade de cerca de 7.000 habitantes, na divisa paulista com o Paraná.
Ou então em Itapeva (SP), 13 mil moradores, onde um motociclista de cerca de 50 anos morreu em um calmo cruzamento do centro da cidade.
Segundo o ONSV, os números indicam a necessidade de que as prefeituras pelo país foquem a gestão de seus sistemas de transporte e vias.
Para se ter uma ideia, apenas 29% das cidades brasileiras têm o sistema de trânsito local municipalizado. Ou seja, criaram departamentos executivos para o trânsito e atuam nos temas de educação, engenharia de tráfego e fiscalização.
Em todas as outras cidades, o trânsito local fica sem cuidados específicos.
A partir de 2018, com a criação do Pnatrans (Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito), a expectativa era de que todos os municípios brasileiros assumissem a responsabilidade de gerir seu trânsito, o que não ocorreu. A municipalização já foi feita em 98% das cidades grandes e em 97% das de médio porte. O vácuo está justamente entre as de pequeno porte.
Para José Ramalho, presidente do ONSV, ainda há um custo muito grande para que as prefeituras assumam o controle e a fiscalização de suas avenidas.
“Para organizar um sistema desse, o prefeito precisa de receitas que viriam de multas ou zona azul a ser implantadas nas cidades. Isso gera um custo político que muitas vezes ele não está disposto a assumir”, comenta.
Ramalho recomenda que cidades menores adotem o cuidado com o trânsito em etapas. Inicialmente com a educação, depois com a introdução de medidas de engenharia e, após essas medidas, a fiscalização. “Esse avanço dá maior respaldo para a fiscalização ocorrer”, analisa.
Para Pedro de Paula, da Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito, não é possível afirmar que a municipalização do serviço resulte naturalmente na redução de mortes. Ainda assim, para ele, os dois elementos estão relacionados.
“Se as cidades menores não são municipalizadas, elas têm capacidade menor de ingerência sobre o trânsito. Elas dependem dos agentes dos estados e do governo federal e o ordenamento fica muito difuso”, comenta.
Segundo ele, outras pesquisas no ramo apontam que áreas com melhor capacidade de planejamento do trânsito e mobilidade, desenho de vias, e de fiscalização reduzem mortes no trânsito.
O Pnatrans trouxe ainda uma nova meta de redução de mortes no trânsito (outra havia sido pactuada com a ONU e está longe de ser alcançada até 2020). O novo objetivo é reduzir em 50% o índice de mortes no trânsito a cada cem mil habitantes até 2028. A meta leva em consideração a taxa de mortalidade no trânsito de 2018, que ainda não foi contabilizada.
Ainda sem os dados de 2018, a pesquisa da UFPR estimou a meta de 2028 em 9 mortes no trânsito a cada cem mil habitantes. Segundo a pesquisa, 62% das cidades estão acima desta meta.
Entre os municípios acima da meta, os de menor porte estão mais longe dela. Eles têm, em média, uma taxa de 31 mortes a cada cem mil habitantes. As cidades grandes têm média de 19 mortes.
Os municípios onde houve registro de mortes e que não criaram seus departamentos de trânsito estão também mais longe da meta do que aqueles que municipalizaram o setor.
Folha de SP