Quando os passageiros descem do ônibus a ‘pesca’ se inicia imediatamente: “Levo para João Câmara!”, “Ceará-Mirim agora, quem vai?”, “Deixo onde quiser!”, surgem os gritos, mais altos à medida que mais pessoas chegam à última parada de Natal na BR-101 Norte, principal caminho para cidades do interior no litoral norte do estado. Trata-se da disputa barulhenta e de leis não escritas dos loteiros, profissão informal de transporte coletivo, em busca de clientes para fechar o carro e começar a viagem. “Aqui é a lei da sobrevivência”, explica o loteiro Emanoel Silva (nome fictício usado pela TRIBUNA DO NORTE para não identificar a pessoa), 53 anos, na manhã desta quarta-feira, 27, debaixo de uma chuva fina.
Foto: Magnus Nascimento/Tribuna do Norte |
Todos os dias trafegam no local milhares de pessoas. Os loteiros se concentram a uma distância aproximada de 20 metros da parada de ônibus intermunicipal nas primeiras horas da manhã e permanecem até às 20h, aproximadamente. Segundo Emanoel, chegam a ficar cerca de 100 carros de lotação no local. Em todo estado, de acordo com o Departamento de Estradas e Rodovias (DER), estima-se que 10 mil pessoas trabalham na atividade. O número cresce cada vez mais por ser uma alternativa ao desemprego e pela insatisfação dos passageiros com as linhas de ônibus intermunicipais.
Cada passageiro que desembarca de ônibus municipal de Natal com a intenção de pegar outro para as cidades do interior é um cliente potencial dos loteiros e merecem ser disputados entre eles na ‘pescaria’, quando todos se juntam em torno da parada para ver quem fica. A principal ferramenta de convencimento é a conversa: aponta-se de tudo, da vantagem de ir mais rápido, menos chance de ser assaltado, ao conforto de ser deixado em casa. “Quem for mais ligeiro para convencer é quem pega o passageiro”, resume Emanoel, no local desde às 5h, horário em que chega todos os dias.
O código entre eles diz que quem perde o passageiro se conforma e vai em busca de outro, evitando as brigas. Existe também a divisão de cidades: nem todos levam para todas as cidades. O acordo é não-escrito, e quem está ali diariamente aprende quem vai para onde. Natural de João Câmara, Emanoel transporta para a cidade distante 81 quilômetros de Natal e outras vizinhas.
O loteiro é um homem baixo, negro, que utilizava boné, sandálias, camisa de cor rosa e uma bermuda bege. Nada de destaque na vestimenta, mas sim na conversa. Durante meia hora, conseguiu três pessoas para embarcar no carro. “O preço é o mesmo do ônibus, mas eu te deixo em casa”, dizia para uma delas. Dez minutos depois, estava começando a sua primeira viagem com destino a Bento Fernandes, João Câmara e Pedra Grande com três passageiros no carro modelo celta de cor branca.
Entre eles, estava Cícero Martins, 51 anos, peixeiro que ia para Bento Fernandes visitar a mãe. Faz essa viagem uma vez por mês, sempre com os loteiros na ida; na volta, vem com o irmão no carro. Depois de pensar alguns minutos, ele considera que “já faz uns dez anos” que começou a pegar lotações. “É mais barato, rápido e mais seguro contra os assaltos em ônibus”, argumenta, lembrando que nunca passou por uma situação ruim dentro dos carros particulares. Já no ônibus intermunicipal, tem um sobrinho que sofreu assalto, e prefere não correr o risco. “Eu fico sabendo de muito relato de assalto”.
Cícero é morador do Nova Natal, conjunto do bairro Lagoa Azul, na zona Norte de Natal. Tem a vantagem de não precisar sair de casa para trabalhar porque vende peixe num espaço próprio. Sai somente para ir ao bairro da Ribeira, na zona Leste, para a compra dos pescadores. Evitando o ônibus de todo modo, opta por usar uma moto que possui. “Mas ela não dá para viajar porque é pequena, e viajar de moto eu acho perigoso”, explica a escolha de fazer o trajeto a Pedra Grande pagando um loteiro. O preço cobrado por viagem é R$ 28, contra o preço do ônibus de R$ 30 e um gasto de R$ 20 de gasolina se optasse por ir de moto.
Logo depois de pegar, precisa ir com Emanoel. Só retorna no fim de semana. O loteiro, por outro lado, volta no mesmo dia para realizar pelo menos mais uma viagem. Ou duas. É imprevisível. “Eu fico aqui até às quatro da tarde, mais ou menos, aí tem dia que faço duas viagens, tem dias que faço três… depende”, diz. “Tem que ser assim, para tirar por mês o que dá para a gasolina e o que dá para ‘o frango’”.
Números
10 mil loteiros atuam no Rio Grande do Norte, estima DER/RN
50 desses motoristas estão regularizados
54 cidades não têm transporte intermunicipal a disposição
437 mil pessoas estão desassistidas nessas cidades
Fonte: DER/RN e Fetronor
Tribuna do Norte