Viajar de trem no Brasil é uma raridade. Ao longo dos anos, o país privilegiou o transporte rodoviário de passageiros e hoje, nossos 29.800 quilômetros de trilhos servem basicamente para movimentar carga. As exceções são a Estrada de Ferro Carajás e a Estrada de Ferro Vitória a Minas, ambas de longa distância e a serviço da comunidade, com um fluxo anual de cerca de 1 milhão de pessoas.
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Há outro caso, mais pitoresco. São os 23 trens turísticos e culturais autorizados pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Desses, apenas 12 estão em funcionamento. Em geral, eles percorrem trechos curtos, de menos de 50 km, e visitam localidades de interesse histórico. Embora essas máquinas proporcionem passeios aprazíveis, o que elas prometem, na verdade, é uma volta no tempo. O freguês compra um bilhete e embarca no século retrasado.
Nesse modelo de negócio, temos, por exemplo, o Trem da Vale — Ouro Preto e Mariana, fruto da revitalização da ferrovia construída em 1883. Desde 2006, é possível percorrer os 18 km que separam as cidades a bordo de vagões artesanalmente restaurados, com o interior todo em madeira e com janelas avantajadas. A observância aos detalhes de época brilha também na travessia São João Del Rei – Tiradentes (12 km), feita numa maria-fumaça sobre o que restou da Bitolinha, a Estrada de Ferro Oeste de Minas, do século 19, desativada em 1931.
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Além de Minas, há experiências semelhantes em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. O charme das locomotivas atrai visitantes, aquece o comércio e favorece a prestação de serviços. Por mais paradoxais que sejam, o progresso e o desenvolvimento locais podem ser movidos a nostalgia.
Apesar do rico passado colonial e da malha ferroviária pronta para uso, o estado de Goiás estava fora desse circuito até o momento. Mas essa ausência poderá ser sanada em breve. Desde 2018, um grupo de prefeitos se articula ao redor do Consórcio Intermunicipal de Cultura e Turismo da Região da Estrada de Ferro de Goiás, cujo objetivo é estabelecer uma linha de passageiros entre Silvânia e Catalão, passando por 14 cidades.
O projeto tem o apoio do governo do estado (por meio da Goiás Turismo), do Ministério do Turismo e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que restaurou as estações ferroviárias de Pires do Rio, Vianópolis (Tavares, Ponte Funda e Caraíba), Goiandira, Silvânia e Urutaí. Também foram feitas ações de manutenção no Museu Ferroviário de Pires do Rio, implantado na antiga oficina da Rede Ferroviária Federal S.A.
“O sonho é grande e tem muita coisa a ser feita. Agora que colocamos essas cidades no Mapa do Turismo Brasileiro, estamos trabalhando no plano de viabilidade técnica e financeira. Também estamos atrás dos carros e precisamos verificar a compatibilidade deles com a bitola dos trilhos”, informa o prefeito de Silvânia e presidente do consórcio, Zé Faleiro. A licença do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para a operação é outra pendência burocrática a ser resolvida.
Foto: Prefeitura de Silvania |
Segundo Faleiro, diversos investidores já manifestaram interesse, inclusive um grupo chinês, mas não está definido se a exploração será feita por trechos ou entregue a apenas uma empresa. O certo é que o projeto surge como uma oportunidade única de alavancar a região. “O turismo é uma fonte alternativa de renda e fomenta desde a gastronomia até o artesanato, passando pela hotelaria. E nós temos um potencial muito grande para receber pessoas”, acredita o prefeito.
“Entendemos que a união desses municípios goianos ao longo da ferrovia, além de resgatar o passado da região, projeta o futuro com viagens que levam o turista a descobrir novos atrativos históricos, culturais e naturais do roteiro”, reforça o secretário nacional de Qualificação e Promoção do Turismo do ministério, Bob Santos. Se tudo der certo, o apito do trem voltará a ecoar na terra de Cora Coralina.
Trem nas nuvens
Caso consiga se viabilizar, o trem turístico de Goiás pode buscar inspiração no caso da Serra do Mar Paranaense, onde é oferecido o “passeio mais bonito do Brasil”, entre Curitiba e Morretes. Ao longo dos 110 km de percurso, avista-se a maior área contínua de Mata Atlântica do país. A geografia sinuosa garante que, durante alguns instantes, o passageiro tenha a sensação de que o vagão está voando entre as nuvens.
Inaugurada em 1885, a estrada de ferro é uma obra-prima da engenharia. Planejada para escoar a produção de erva-mate e madeira rumo ao Porto de Paranaguá, foi considerada impossível por engenheiros europeus até que os irmãos André, Antônio e José Rebouças assumissem o projeto. Consta que mais de 9.000 operários, com muitas baixas no caminho, escavaram na pedra os 14 túneis e a fundação das 30 pontes.
Foto: Silvio Aurichio |
Desde então, não interrompeu o funcionamento. A concessão para passageiros, dada à Serra Verde Express, tem 22 anos. Muitas vezes, há interrupções para esperar a passagem do comboio de carga, com mais de 500 m. Na versão turística, contudo, o trem não desce a serra: fica em Morretes e, de lá, pode-se deslocar até Antonina.
“O fluxo para Morretes é muito grande. Temos um público cativo de 3 milhões de pessoas visitando a cidade”, calcula Oley Antunes de Oliveira Junior, diretor de Apoio do Turismo do município. Ele acredita que a atratividade não depende só do trem, contudo, é inegável o carisma trazido pela estrada férrea. “A importância talvez seja mais de marketing do que econômica. O trem é famoso, tem história e se tornou uma marca registrada. Talvez, se não tivesse o trem, seria uma cidade comum. É isto: ele deu a cara da cidade”, define.
A Serra Verde Express tem, em sua frota, 29 carros de passageiros, 1 bagageiro e 1 vagão-cozinha. Em média, eles atendem 200 mil passageiros por ano. O passeio pode ser feito em vários níveis de sofisticação, com refeições diferenciadas e até com degustação de cervejas especiais. Há um vagão inspirado em Copacabana, com mobiliário de antiquário e ares da Belle Époque, mas o suprassumo é a Litorina de Luxo. Foi esse trenzinho, espécie de vagão automotriz, que trouxe para a empresa elogios do The Wall Street Journal.
Gustavo T. Falleiros
Agência CNT de Notícias