Ele é médico oftalmologista e especialista em Medicina de Tráfego. O interesse começou quando, ao realizar um estudo nos anos 1990, descobriu um dado revelador: os acidentes com motocicleta eram uma das maiores causas de trauma no Sistema Único de Saúde e principal motivo de afastamento do trabalho por doença no país. Duas décadas depois, o paranaense Jack Szymanski é o nome à frente da International Traffic Medicine Association (ITMA), instituição ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesta entrevista à Radis, ele analisa o comportamento do brasileiro no trânsito, defende a prevenção como o principal caminho para reduzir a mortalidade e a morbidade nos acidentes e repercute os dados do último relatório da OMS sobre o tema, divulgado em dezembro.
Foto: Divulgação/Catve |
Por que o brasileiro parece sempre tão impaciente no trânsito? Ou, ainda, o que o trânsito no Brasil revela sobre nós, brasileiros?
A princípio é uma questão cultural. São diversos os fatores que vão revelar a postura do brasileiro no trânsito. Primeiramente precisamos investir na formação dos condutores, orientando-os dos riscos que envolvem o ato de dirigir e não apenas ensinar a fazer o carro a andar e estacionar. Pouco é feito no treinamento com relação a condições adversas como as condutas a serem tomadas com chuva, névoa, neblina, na área urbana, na rodovia, de dia ou de noite. Nossos exames médicos e psicológicos para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), apesar de tornarem-se cada vez mais rigorosos, ainda não conseguem detectar indivíduos pouco responsáveis, compulsivos, com distúrbios comportamentais e até portadores de doenças psiquiátricas, obtendo uma qualificação mais adequada do motorista para essa atividade de risco, que é a direção veicular. Ao volante, o comportamento masculino exigente, dominador, agressivo, imediatista e irritado, contrasta com o temperamento feminino passivo, cauteloso, paciente e tranquilo. A agilidade, a pressa, muitas vezes a compulsão para a velocidade são fatores presentes no universo masculino. Daí podermos entender que o homem na direção veicular tem todos os componentes para a sinistralidade. Há o motorista ?dono do mundo?, briguento, agitado, reclamão, que se considera ótimo no volante e tem grande dificuldade em admitir os próprios erros, mesmo que sejam evidentes. Para eles, a culpa é sempre do outro, e comportam-se no trânsito como se estivessem em casa, onde têm o poder de criar regras próprias. Mas também há o motorista cauteloso, que para e dá a passagem de forma civilizada e segura, mantendo um entendimento cordial no trânsito principalmente em grandes congestionamentos.
E que outros fatores influenciam o comportamento do motorista?
Há fatores como, por exemplo, o uso de bebidas alcoólicas que é uma prática enraizada na América Latina, estando inserido em nosso meio e fazendo parte das festividades, da cultura e da economia da região. No entanto, o impacto que o uso dessa substância infere sobre a saúde pública é alarmante, com destaque para o uso de álcool por menores, o uso de bebidas alcoólicas associado com direção veicular e a dependência dessa substância. Aos poucos vamos criando uma consciência voltada à necessidade de evitar o consumo de álcool ao dirigir, assim como o uso de outras drogas lícitas e ilícitas. Não poderia deixar de citar o exame toxicológico de larga janela, atualmente obrigatório nos exames de Avaliação Física e Mental para candidatos à obtenção das categorias C, D, E, ou renovação da CNH nestas categorias, que é uma tecnologia laboratorial que representa o que há de mais avançado no mundo para detectar o uso regular de drogas psicoativas. É uma poderosa arma no combate ao consumo de drogas e na efetiva redução da violência viária envolvendo motoristas profissionais. Enfim é preciso ensinar todos os aspectos que o automóvel e o trânsito representam, levando-se em conta as questões de educação e cidadania. Que o trânsito é um espaço público e que as pessoas têm de saber dividir e conviver. Investimentos em educação, legislação e infraestrutura, aumento da fiscalização com policiamento nas ruas, rigor da legislação e mudanças na formação dos condutores são a chave para reduzir significativamente as mortes no trânsito.
O risco no trânsito é três vezes maior nos países de baixa renda do que nos países de alta renda, aponta relatório recente da OMS. Que leitura podemos fazer desse dado?
Triste realidade. É possível notar que o risco de acidentes e consequentes óbitos no trânsito estão intimamente ligados ao IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] que, por sua vez, tem por base a educação, a longevidade e a renda per capita de cada país. Os resultados do último estudo da OMS nos levam a crer que os países de baixa renda não apresentam suficiente fiscalização e/ou leis sobre segurança viária que melhoram o comportamento dos usuários das vias e reduzem as colisões, atropelamentos e consequentes lesões e mortes no trânsito. Especialmente as leis relacionadas com os cinco principais fatores de risco, que são o excesso de velocidade, condução sob efeito do álcool, o não uso de capacetes pelos motociclistas, o não uso de cintos de segurança e sistemas de retenção para crianças. As mudanças mais positivas no comportamento dos usuários das vias ocorrem quando a legislação é associada a uma aplicação rigorosa e continuada da lei e pela sensibilização do público.
O levantamento da OMS também indica o Brasil como o pior país quando o assunto é limite de velocidade em áreas urbanas. O que pode ser feito para modificar essa realidade?
Aí também parece ser um problema cultural em nosso país. Nossas autoridades ainda não se conscientizaram da necessidade de redução da velocidade em nossas áreas urbanas. Quanto maior a velocidade média no trânsito, maior é a probabilidade de uma colisão e maior a gravidade de suas consequências. Investimentos em transporte público e regras mais rígidas com a redução da velocidade em áreas centrais e residenciais já são usuais na Europa e são diferenciais para um trânsito menos letal. A tendência mundial é a expansão do transporte coletivo e a melhoria da segurança no trânsito, principalmente para pessoas em situação de vulnerabilidade. A OMS sugere que todas as cidades do mundo adotem velocidades máximas de 50 km/h nas áreas urbanas e 30 km/h em áreas residenciais e/ ou com grande circulação de pessoas. Portanto, o que há de mais revelador no relatório sobre o trânsito no Brasil é sem dúvida o desrespeito ao principal fator de risco para a segurança no tráfego, ditado pela OMS, que é a ausência de uma lei uniforme, com limites de velocidade em vias urbanas em todo o país. Temos no Brasil velocidades de 60, 70, 80 e até 90 km por hora liberadas em zonas urbanas, o que demonstra uma grande irresponsabilidade na manutenção de um trânsito seguro. A aplicação da lei é essencial para o cumprimento dos limites de velocidade que devem obedecer a recomendação da OMS. Sem esta aplicação, contínua e visível, o potencial da legislação sobre velocidade para salvar vidas, em nosso país, ainda está longe de ser atingido.
Por que ainda estamos tão longe de solucionar a violência no trânsito?
Estamos caminhando, a passos lentos, mas estamos. Também há de se levar em conta o tamanho continental do Brasil. Temos de dar mais atenção às necessidades dos pedestres, ciclistas e motociclistas que em conjunto somam quase a metade das mortes em lesões no trânsito mundial. Não será possível tornar mais seguras as vias para os mais vulneráveis se não se tomar em consideração as necessidades desses usuários em todas as abordagens voltadas à segurança viária. Tornar mais seguro os deslocamentos a pé ou de bicicleta terá outros benefícios, caso os modos de transporte não motorizados se tornem mais populares, incluindo o exercício físico e a redução das emissões de gases e benefícios para a saúde associados a essas mudanças. Outra medida extremamente perigosa é a passagem das motos no corredor formado entre os carros. No Brasil, ela é permitida desde 1997. Naquele ano a proibição, que vigorava no antigo Código de Trânsito, foi revogada por um veto de natureza política, para não dizer irresponsável, do então Presidente da República [Fernando Henrique Cardoso], cuja justificativa, que causou tantas mortes em nosso trânsito, foi de que a proibição ?limitaria a agilidade de um veículo pensado justamente para tal?. Também, tornar os carros mais seguros significa salvar vidas no trânsito, cumprindo os padrões internacionais básicos sobre segurança veicular, assim como manter nossas vias mais seguras com a duplicação de rodovias, sinalização eficiente e policiamento. Minha linha de pensamento é a preventiva e o foco principal, o combate à violência no trânsito, especialmente em países mais fragilizados nessa área e que têm os maiores índices de mortes em acidentes de tráfego. Mas ainda estamos longe de encontrar soluções para a redução dos acidentes em nossas cidades e estradas, que causam mortes, sequelas, perdas patrimoniais e deixam famílias no desalento e desprotegidas.
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