ALEX ITURRALDE |
O “metrô sobre rodas”, a escolarização em troca de uma cesta básica para a família e a expropriação de parte das zonas verdes foram algumas das propostas revolucionárias que sanearam Curitiba sem qualquer investimento.
Pioneiro da sustentabilidade e especialista em conseguir grandes mudanças com poucos recursos, o arquiteto brasileiro Jaime Lerner, de 80 anos, diz que entrou na política por responsabilidade.
“O prefeito estava destruindo a cidade”, recorda. E deixou escrito seu ideário no livro Acupuntura Urbana (Record, 2003).
Ele chega ao salão do hotel mancando. Há seis meses operou da coluna. Mas veio até Pamplona para dialogar – no congresso Menos Arquitetura, Mais Cidade – com outro grande professor favorável a reorientar o espaço urbano para os pedestres: o dinamarquês Jan Gehl. Pede água, mas às 17h o bar do hotel Três Reyes está fechado. “Têm que esperar até 19h”, esclarece a recepção. A assistente do fotógrafo lhe oferece sua garrafa de água. “Eddie Murphy sempre pergunta: ‘Aonde vão carregando todo dia essas garrafas de água? Ao deserto?” Dá uma gargalhada e bebe a água.
Lerner entrou na política porque o prefeito de Curitiba havia estreitado as calçadas para que passassem mais carros. “Quando você alarga as ruas, estreita a mentalidade. E destrói a história”, diz ele.
Era 1964 e Lerner, ainda estudante, idealizou com vários colegas o Plano de Circulação da cidade. Em 1971, foi escolhido prefeito a dedo pela ditadura militar. Os militares o nomearam e ele se opôs à sua política? “O regime não queria protestos. Por isso canalizou as queixas nas cidades. Podiam me mandar embora a qualquer momento, do mesmo jeito que tinham me nomeado. Minha equipe era formada por jovens comunistas. Sabíamos que tínhamos pouco tempo. Por isso eu os adverti: “Temos que trabalhar rápido.”
Sua primeira ideia foi convencer as pessoas de que o carro não era importante. “É o cigarro do futuro. Vai desaparecer em quase todas as partes. Se é preciso continuar fabricando carros para gerar emprego, serão para viagens e lazer, não para a cidade. Não há futuro urbano se o transporte depende de veículos particulares”, sentencia.
Em 1971, Curitiba tinha 700.000 habitantes. Era a típica cidade estendida, “brasileira”, diz Lerner. A pessoa levava horas para ir do centro até o subúrbio. Na época, dizia-se que qualquer urbe com um milhão de habitantes tinha que ter um metrô. Mas eles não tinham dinheiro para construí-lo. Estudaram fazer um na superfície, “um trólebus, mas barato: um ônibus com poucas paradas e uma faixa exclusiva”. E criaram tubos nas paradas para permitir o embarque rápido por várias portas, como no metrô. “Funcionou. As pessoas não tinham que esperar mais do que um minuto”.
LINIA FARIA |
Os ônibus prepararam a expulsão dos carros de Curitiba. E, solucionada a mobilidade, a consequência imediata foi a melhoria das áreas verdes. A proporção desses espaços aumentou de meio metro quadrado por habitante para 50. “Hoje estamos na marca dos 60 metros quadrados, um dos índices mais altos do mundo”, afirma.
De novo sem dinheiro, em lugar de construir praças o que sua equipe fez foi cuidar melhor da vegetação existente. “Se uma família tinha uma área [verde] de 100.000 metros quadrados, expropriávamos 80.000. Os proprietários ficavam com 20.000 para sempre, livres de impostos, em troca de uma venda econômica para a Administração. E o sobrenome da família – Barigui, Tanguá – dava nome ao parque. Foi uma solução ganhadora. Partimos do nada e multiplicamos o espaço público. A criatividade começa quando você tira um zero do orçamento. O excesso de recursos leva ao desperdício.” Lerner é contundente ao não defender a participação cidadã. “É pouco eficaz. Para que as coisas funcionem, você tem que preparar um cenário que a grande maioria entenda como desejável: frequência de ônibus, água mais limpa, professores mais motivados, crianças escolarizadas… Aí você com certeza vai triunfar”, diz ele. Também afirma que “o smart é bobo. Se quiser resolver a mobilidade, tem que conseguir que as pessoas vivam e trabalhem em distâncias curtas. A vida de bairro salvará a cidade. O colégio, o esporte e as compras têm que estar perto. A cultura, o teatro e os museus podem estar no centro.”
O modelo de Curitiba levou esse arquiteto a dar aula de urbanismo na Universidade Berkeley (Califórnia). Ao regressar, voltou a ser prefeito em 1979. E, uma década depois, venceu de novo nas urnas postulando-se apenas 12 dias antes das eleições. “Toda a minha família era contra. Mas ser prefeito foi a melhor época da minha vida. Você vê as coisas mudarem. Isso é maravilhoso.”
Seu metrô sobre rodas começou transportando 50.000 passageiros por dia. “Hoje transporta 2,6 milhões de pessoas, quase a mesma marca do metrô de Londres, que leva 3 milhões”, diz. Segundo ele, o sistema é hoje o mesmo que há meio século, embora esteja melhorando: a frequência é maior, e o combustível deverá ser substituído por eletricidade.
Além do transporte, o Unicef premiou seu projeto Da Rua Para A Escola. “Um mérito de minha esposa, que era professora.” Em sua etapa de governador do Paraná, entre 1995 e 2002, ele via que em todas as cidades havia crianças pela rua, então iniciou um programa com uma medida populista: cada família que levasse uma criança ao colégio receberia uma cesta básica semanal. “Foi outra maneira de conseguir muito com pouco.”
Lerner conta que falou uma vez com o ator Jeremy Irons porque queria fazer um filme sobre a poluição dos plásticos nos oceanos. “Expliquei a ele nosso acordo com os pescadores. Se pescassem peixes, podiam ficar com eles. Se pescassem lixo, nós o comprávamos. Quanto mais lixo conseguiam, mais dinheiro lhes dávamos. Foi outra situação em que você não pode perder. Por isso foi um sucesso.”
Algo parecido aconteceu com a reciclagem. “Vimos que eram as crianças que tinham que educar os pais. Nós as formamos. Elas depois são duríssimas. Conseguimos ao mesmo tempo professores e policiais nas casas. E as pessoas se acostumaram a reciclar”, recorda.
Sendo governador, chegou à conclusão de que o problema essencial da educação era a formação dos professores. E decidiu se reunir com eles. Chegavam de todos os cantos do Paraná. E falavam. “Buscávamos abertura mental”, recorda. Sua equipe fazia os professores escutarem pessoas criativas: músicos, escritores… “Os artistas são pessoas com a pele mais fina, por isso veem as coisas antes. Se posso trabalhar com pessoas que antecipam o futuro, por que vou trabalhar com as que só veem o passado?”
Lerner insiste que Curitiba não é um modelo. “É uma referência de simplicidade, de imperfeição e de trabalho com poucos recursos. Minha intenção nunca foi salvar o mundo, e sim promover o desejo de mudar as coisas. Acho que isso é possível.”
El País