Foto: Damião Santana |
O capricho dos caminhoneiros com relação às suas máquinas alcança os detalhes. O diferencial pode estar em um escapamento cromado, uma manopla de câmbio personalizada, uma tampa de cubo imponente. Até recentemente, porém, a grande estrela era a pintura. Motorista que se prezava cobria a carroceria com filetagens – adornos feitos com pincel, estêncil ou carretilha. E ainda ostentava no parachoque frases bem-humoradas do tipo: “Não sou mágico, mas vivo de truck”.
Hoje, os ornamentos feitos à mão são raros. E mesmo os trocadilhos irreverentes perderam lugar para mensagens de cunho motivacional ou religioso. Antes que esse universo desapareça por completo, pesquisadores e artistas gráficos de diversas partes do país têm feito um importante trabalho de registro. Para esses profissionais, a criatividade popular é uma fonte de inspiração e merece ser tratada com todo o respeito. As obras espontâneas, produzidas sem estudo formal, como a pintura de placas e letreiros, são exemplos de design vernacular.
Padrões descobertos
Fátima Finizola é uma das pioneiras nesses estudos. A designer e professora da UFPE, de Caruaru, reuniu um vasto material para o projeto “Iconografia das carrocerias de Pernambuco”, lançado em 2013 com o apoio do Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura). Ao lado do fotógrafo e designer Damião Santana, ela percorreu Recife, Olinda, Caruaru e Jaboatão dos Guararapes em busca das derradeiras oficinas de carroceria, onde os caminhoneiros tradicionalmente “customizavam” seus veículos.
“Na época, a cultura da ornamentação já estava caindo um pouco. Hoje, é difícil de encontrá-la. Havia também uma perda nas inscrições de textos, com predomínio de citações religiosas”, conta Finizola. “Era uma produção efêmera e sem registro até então. A ideia era valorizar e colocar em jogo como obra de design. Para isso, tentamos traçar um perfil. O primeiro critério eram as placas serem de Pernambuco”, recorda.
Durante o processo, a dupla identificou dezenas de padrões de filetagem. “Visitamos as empresas de reforma e fabricação de carroceria para aprender os processos e vimos que o uso de estêncil era muito forte”, recorda. “É difícil encarar esse trabalho como autoral, pois uma empresa pega o estilo da outra e faz adaptações em cima”, ressalta. Segundo a pesquisadora, os desenhos são, em geral, abstratos e repetitivos, aproveitando ao máximo os moldes vazados. “A gente não vê elementos pictóricos. A exceção são as quinas, onde, por vezes, eles botam um cavalinho, uma flor de lis. E, nas lameiras, são comuns imagens de Jesus Cristo ou de Sol.”
Da carroceria para o texto
Vários dos achados de Fátima e Damião foram sintetizados na forma de uma fonte composta de símbolos e desenhos – a “Dingbat Carroceria” –, que pode ser baixada gratuitamente no site do projeto (www.designvernacular.com.br). Desse modo, as filetagens ganhariam uma sobrevida virtual.
Essa também é a aposta do designer e professor Rafael Hoffmann, da Faculdade SATC, de Criciúma (SC). Inspirado nas famosas frases de caminhão, ele criou a família de fontes “Mantenha distância”, disponível para download no site rafaelhoffmann.com/mantenhadistancia
Rafael teve essa ideia a partir de uma experiência prosaica. “Eu estava na BR, dirigindo até Porto Alegre para um encontro de designers, e fiquei observando os caminhões na estrada. Como estava no clima de tipografia, liguei uma coisa a outra: percebi que já tinha visto aquilo, que existia um padrão muito uniforme nas pinturas de carroceria, e resolvi pesquisar”, lembra o designer, que cresceu cercado de caminhões, pois o avô tinha um posto de gasolina.
O resultado foi a “Mantenha distância”, uma coleção dessas letras de base quadrada, traço pesado e cantos cortados em linha curva ou reta. Na verdade, Rafael capturou a essência de um tipo de trabalho popularmente conhecido como “degradê”. O nome vem da transição grosseira de cores que serve de base para as frases escritas nos caminhões. “Parece ser uma tendência esse estudo do popular, que busca preservar e trazer para um meio mais formal algo que antes estava na periferia do design”, analisa o professor.
Comboio criativo
“Esse tipo de trabalho é quase oculto. Pesquisei bastante, e não encontrei quase nada sobre o assunto”, reforça Felipe Monoyume. O ilustrador e designer brasiliense foi instigado por uma encomenda inusitada do violeiro Fábio Miranda, um declarado admirador da arte da filetagem. “Fábio veio com essa ideia para ser capa de disco. Ele me passou uma apostila com exemplos de padrões. A partir daí, criei 42 gráficos diferentes”, revela Monoyume, que se dedicou à empreitada por quase oito meses.
Tanta dedicação veio à tona com o “Chamamento”, em 2016. O CD conta com a participação de 33 músicos convidados. Monoyume pensou que essa reunião de artistas poderia ser simbolizada por uma multiplicidade de filetagens, como se fosse um comboio de caminhões. “Depois, percebi que dava para fazer mandalas com os padrões, o que, por conta da forma circular, cria um link com as rosetas típicas das violas caipiras”, revela o artista, referindo-se aos enfeites que rodeiam a “boca” do instrumento.
Os esforços de Monoyume, Rafael Hoffmann e Fátima Finizola não são isolados. Os departamentos de arte e desenho industrial das faculdades estão repletos de projetos semelhantes. A modernização pode ter alcançado os caminhões, mas a arte associada às antigas carrocerias continua rodando em alta velocidade no imaginário do brasileiro.
Gustavo T. Falleiros
Agência CNT de Notícias