O transporte coletivo perdeu espaço para o individual no Brasil. Nos últimos 11 anos, o deslocamento da população nas cidades brasileiras por ônibus, metrô, lotações e trens sofreu redução de 10,2%. Nesse período, o transporte individual, principalmente por automóveis, subiu na mesma proporção, o que demonstra a necessidade de repensar o planejamento urbano e a logística do modo de ire vir dos moradores, em especial nas grandes metrópoles.
Os números são da pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, feita em parceria pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Em 2006, o transporte coletivo respondia por 60% do total de deslocamentos nas cidades. Hoje, esse índice baixou para 49,8%. Em contrapartida, as viagens individuais subiram de 40%, em 2006, para 50,2% agora. Além do carro, as pessoas abandonaram o ônibus e o metrô para andar a pé, de bicicleta, moto e, em menor escala, usar serviços por aplicativos, como o Uber.
Segundo os pesquisadores, diversos motivos levaram à substituição do coletivo pelo individual. Entre eles, o alto preço das passagens, falta de conforto, oferta reduzida de serviços, violência, atrasos de horários, falta de flexibilidade nas linhas e os estímulos concedidos pelo governo federal nos últimos anos para a compra de veículos próprios. Na mesma pesquisa, o transporte foi apontado como um dos cinco principais problemas urbanos percebidos pela população, perdendo para falta de segurança, saúde e desemprego.
“A demanda parece sempre estar muito à frente da oferta Logo, o planejamento nunca é feito com folga, com margem para atender a necessidades que vão surgir”, afirma a professora Mara Rovida, professora de jornalismo das Faculdades Integradas Rio Branco e autora do livro “Jornalismo em trânsito: o diálogo social solidário no espaço urbano”, que trata questões relativas à comunicação e mobilidade. “Na verdade, tudo é pensado para sanar as necessidades já instaladas.”
“As cidades estão entulhadas de carros que ocupam a maior parte do sistema viário e possuem o privilégio de estacionar em áreas de altíssimo valor. Com o incentivo nos últimos anos para a aquisição do automóvel particular, toma-se cada vez mais fácil que as famílias optem pelo transporte motorizado individual”, diz o presidente-executivo da NTU, Otávio Vieira da Cunha Filho. “Assim, a opção do transporte coletivo é cada vez menos atrativa, pois não tem prioridade no espaço viário.”
Cunha lembra que, segundo levantamento do Ministério das Cidades, menos de 10% dos municípios brasileiros possuem um plano de mobilidade urbana. A existência de um projeto de mobilidade, prevista em lei federal para os municípios com mais de 20 mil habitantes, foi prorrogada para 2019.
A NTU defende medidas como a criação de um tributo de 6% sobre a gasolina, o etanol e o gás veicular para criar um fundo específico para o custeio da tarifa do transporte público brasileiro, uma das principais queixas dos usuários. “A tarifa média nacional atual, de RS 3,50, está no limite da capacidade de pagamento do público”, justifica o presidente da NTU. Segundo estudos da entidade, a medida podería gerar R$ 12 bilhões por ano, suficientes para custear até 30% do transporte público por ônibus em todo o país.
Em Belo Horizonte, o número de passageiros transportados pelos ônibus caiu cerca de 7% nos últimos anos, passando de 1,5 milhão para 1,4 milhão por dia. Fatores como a crise econômica e a migração para o automóvel fizeram com que o sistema perdesse cerca de 100 mil passageiros por dia. “Queremos reverter esses números nos próximos anos”, afirma a diretora de transportes da BHTrans, Elizabeth Gomes de Moura.
Responsável pelo gerenciamento do sistema, a BHTrans executa uma série de ações para tentar melhorar o transporte coletivo na capital mineira, cujo serviço é atendido em mais de 90% pior ônibus. Diante da falta de recursos por causa da crise econômica que atravessa o país, a prefeitura optou pior ações que não dependem de grandes obras.
Um deles é o sistema Vilas e Favelas, cujo objetivo é melhorar o serviço no interior de bairros mais carentes e de difícil acesso. Nesses locais, o serviço é atendido por micro-ônibus para vencer a topiografia irregular e o traçado urbano sinuoso. Para permitir a articulação com o restante da cidade, essas linhas são integradas a outras que levam à região central.
Para melhorar a fluidez do tráfego e diminuir o tempo das viagens, estão sendo analisados pequenos gaigalos de trânsito ao longo do trajeto dos ônibus e a criação de 54 quilômetros de faixas exclusivas de ônibus em Belo Horizonte. “Para atrairmos novos passageiros, o tempo de viagem do ônibus tem de ser competitivo ao do automóvel”, explica Elizabeth. Para aumentar o conforto e a melhoria do meio ambiente, está em análise a aquisição de ônibus elétricos. “Nossa meta é adquirir 25 ônibus híbridos até 2019”, afirma a diretora da BHTrans.
O ônibus híbrido (elétrico e convencional) é um nicho que conquista espaço cada vez maior nas ruas, principalmente pelo conforto e sustentabilidade ambiental. Segundo especialistas do setor automobilístico, o mercado de elétricos ainda é restrito, mas deve crescer nos próximos anos. A Volvo já entregou 37 híbridos, que circulam em Curitiba, São Paulo e Santos. Outros três estão em fase de testes para a capital paulista e um para Caxias do Sul (RS).
“A indústria brasileira de chassis e carrocerias de ônibus é uma das mais avançadas no mundo. Os ônibus produzidos aqui já estão’tropicalizados’ para suportar a infraestrutura precária”, afirma Ayrton do Amaral, especialista em mobilidade urbana da Volvo Bus Latin America. Segundo ele, o planejamento urbano deve levar em consideração a supremacia do transporte coletivo sobre o individual.
“A desculpa de não ter espaço não é aceitável, pois o coletivo deve prevalecer sobre o individual. Se não houver espaço, quem tem de perder é o automóvel, e não o transporte público”, diz Amaral, que defende redes troncais de ônibus com grande amplitude e capilaridade para atender a população nos bairros mais distantes. O ônibus, segundo ele, tem a vantagem de ser mais rápido e barato para implementar, e novas tecnologias, como o BRT(Bus Rapid Transport), são ideais para as cidades brasileiras. “Com o sistema BRT, é possível criar uma rede com o mesmo investimento de apenas uma linha de metrô, em menos tempo e com menos recursos.”
Em Manaus (AM), onde são transportados 20 milhões de passageiros por mês em 1,37 mil ônibus, a proposta da prefeitura é criar dois eixos estruturais de transporte no sentido norte-sul e leste-centro, e corredores preferenciais complementares para dar capilaridade à rede. Os dois troncos principais devem ser operados no sistema BRT. “Esses dois grandes eixos vão permitir a reestruturação de toda a rede de transporte”, afirma o superintendente municipal de transportes urbanos de Manaus, Ronaldo Brito.
Na capital paulista, onde são registrados 9,6 milhões de embarques diários em 1.350 linhas de ônibus, a tecnologia é aliada para driblara falta de recursos e aumentar a eficiência do sistema. A Secretaria de Transportes de São Paulo criou o Laboratório de Mobilidade Urbana (Mo-biLab), uma startup municipal para incentivar soluções inovadoras e ferramentas capazes de desburocratizar processos e otimizar o trabalho da São Paulo Transporte (SPTrans) e da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). O MobiLab já desenvolveu, por exemplo, a automatização do processo de fiscalização e vistoria dos ônibus e trâmite de julgamento dos recursos de multas.
Além das novas tecnologias, é necessário explorar outros modais que ajudem a retirar veículos das ruas, como bicicleta, aplicativos de compartilhamento de viagens e até caminhadas a pé. “Não é de hoje que se discute a aproximação da relação casa-trabalho. Se a acessibilidade e a mobilidade urbana puderem se desenvolver com pequenos deslocamentos, a necessidade por infraestrutura será minimizada”, afirma Rafael Castelo, professor do departamento de engenharia civil da FE1.
Fonte: Valor Econômico