O namoro de Eduardo Marques, 28, e Manuela Canto, 26, entrava oficialmente em sua terceira semana quando ele a chamou para terem uma conversa séria. “Se você gosta de mim, vai ter que gostar do que eu faço. Se não, a gente não serve um para o outro”, disse Eduardo, que continuou com o discurso ensaiado. “Você quer saber como eu sou de verdade? Então, vem comigo amanhã. Vamos para Teresópolis”.
Sem fazer perguntas, Manuela concordou. Naquele 6 de julho de 2013, um sábado, o casal de Guapimirim subiu a serra. Ao descerem na rodoviária, se aproximaram de uma roda de rapazes com câmeras a tiracolo. Logo de cara, uma diferença. Naquela turma, Eduardo tinha outro nome: era Duardinho Zerocinquentaeoito. As apresentações ainda estavam sendo feitas quando a rodinha se desfez.
Todos, o namorado de Manuela, inclusive correram para buscar o melhor ângulo de um ônibus que partia. Depois, sorridentes, compararam fotos e trocaram frases cheias de dados técnicos. A cena se repetiu várias vezes durante o dia. “Achei muito estranho”, lembra Manuela, que na volta quis explicações.
Explica-se: é busologia. Um hobby levado a sério, que consiste em acumular imagens, informações e viagens de ônibus. Quanto mais exótico o veículo, mais doido o roteiro e mais cedo o registro estiver online, melhor. Gregários, os busólogos formam “equipes”, grupos para compartilhar fotos, vídeos e áudios (de motor), gerenciar sites, planejar expedições ou simplesmente dividir a dor e a delícia de ser o que são: fanáticos por ônibus.
Derivação do trainspotting (hábito bem britânico de observar trens), a atividade cresce, mas é de nicho. Segundo estimativa do site Busologia do RJ (slogan: “mais que um hobby, uma paixão”), há 10 mil busólogos no mundo e 3 mil no Brasil. O estado do Rio concentra metade deles, cerca de 1.500. Ou 1.501: depois daquele sábado em Teresópolis, Manuela virou busóloga. Ela e Duardinho formam o Casal Zerocinquentaeoito – prefixo de um ônibus especial para ele, o único Apache S21 da Auto Viação Reginas.
Sobre a concentração de busólogos no Rio, Luan Costa, 20, motorista de ônibus “graças a Deus” e coordenador do Busologia do RJ, tem uma teoria. “São muitas empresas, com pinturas, chassis e carrocerias diferentes. Essa “busodiversidade” atrai o público”, diz Luan, que ressalta a integração da comunidade busóloga. — Se em Rio Branco passar um ônibus que já cruzou a Avenida Rio Branco, algum busólogo do Acre vai nos avisar.
Para os aficionados por coletivos, esta época do ano é especial. Entre o Natal e o ano novo, as rodoviárias das grandes capitais se enchem de veículos diferentes – velhos, novos e terceirizados, que saem da garagem para dar conta da demanda de fim de ano.
Na Rodoviária Novo Rio, o ponto nobre para se obervar essas aves raras é a Avenida Rodrigues Alves, sob a sombra dos viadutos. Eis que surge à distância o Busscar Jum Buss 360, de chassi Mercedes Benz O400RSE, da empresa Entram, que só no fim de ano faz a rota Xique-Xique-São Paulo via Rio. Ao ver o veículo branco e cinza se aproximar, Adriano Minervino, 33, saca sua câmera e diz: “Olha que coisa mais linda”! Seu fiu-fiu é respondido por um fon-fon de buzina.
Adriano, também motorista de ônibus, dedicou suas férias a fotografá-los — seu arquivo tem 15 mil imagens. Ele é da equipe OCD Holding, sigla que uniu Ônibus Carioca, Connection Bus e Dallar Bus. A rival da OCD era o extinto Clube do Trecho.
Na luta para postar primeiro fotos de modelos novos, valia madrugar na Via Dutra, visitar fábricas e, dizia o Clube do Trecho, maldizer a concorrência nas empresas de transporte público. Para Adriano, tanto a acusação quanto a rivalidade são bobagens: “Já é idiota fotografar ônibus. Mais idiota é discutir por ônibus”.
Discutir, no entanto, é o segundo hobby de todo busólogo. Quando eles conversam sobre sua paixão, parecem torcedores de futebol. Mas torcedores que conhecem toda a história, todas os dirigentes e todos os jogadores não só do seu, mas de todos os times. Em detalhes.
Durante um encontro, a reportagem presenciou alguns debates interessantes. Houve quem defendesse a suspensão a ar, enquanto outros eram pró suspensão de mola. O traçado das linhas da Baixada Fluminense foi duramente criticado. Colecionadores de tíquetes, bonés, cinzeiros, lápis e tudo que você imaginar relacionado a ônibus mediram seus patrimônios. Comparou-se qual seria a melhor miniatura de veículo do recinto — Luan Costa elegeu uma cujo letreiro que mostra o destino gira, como nos veículos reais. Edegar Rios Lopes Filho, 77, argumentou contra o termo busólogo: prefere pesquisador.
A turma se inflamou diante de um tópico: qual a melhor maneira de se organizar as imensas coleções de fotos de ônibus? Pela data da imagem? Pela data do modelo? No lado vencedor estava Alexandre Britto, 35, que organiza por empresa. Durante anos vizinho da Madureira Candelária, tem um álbum de 200 fotos com todos os veículos que a companhia pôs na rua. “Sou busólogo desde criança. Eu arrancava fotos de ônibus de revistas na sala de espera do médico”, diz Britto. Seu filho Nathan, de 12 anos, também já está se iniciando nos mistérios da busologia.
Há uma unanimidade negativa na tribo: a norma da prefeitura do Rio que, desde 2010, determina que as linhas municipais tenham o mesmo visual, com laterais brancas e detalhes coloridos. A intenção é diminuir a poluição visual e padronizar a frota. Luís Claudio Triani, 38, fecha a cara quando tocam no assunto.
“Padronizou? Podrenizou. Parece uma caixa de lápis de cor”, diz Luís, busólogo e funcionário da Light, que realmente não gostou da mudança. “Quebrou tudo o que a vida tinha de bom. Acabou com toda a beleza. Mais uma vez, o Brasil apagando sua cultura”.
Para os amantes da “busodiversidade” visual, ainda há as linhas intermunicipais, às vezes com variação dentro da mesma empresa. Elas são a especialidade de Luiz Antonio Dória, 33, conhecido no meio como Viajante Doria. Ele é o responsável pelo site Relatos de de Viagem Etc., que usa a busologia para falar de História e turismo. Seus roteiros são puro pinga-pinga. Um exemplo de 2014: Angra dos Reis até Santos, só em linhas urbanas. A viagem se estendeu das 6h às 23h não pelo tráfego, mas porque foi feita em sete ônibus diferentes e uma balsa. “Terminou todo mundo cansado, mas feliz”, conta Dória.
O Viajante não vê graça em avião. Segundo ele, não se vê a paisagem: “Já a janela do ônibus é como se fosse uma tela de cinema. Você enxerga um filme passando”.
Um dos objetivos de Dória é usar seu site para contar a história das empresas de transporte. Uma história que, segundo ele, depende dos busólogos para ser preservada. Adriano Minervino concorda e lamenta que, anos atrás, algumas companhias desconfiassem de quem as procurava buscando informações. “Não entendiam, suspeitavam de espionagem industrial. Hoje, a maioria mudou de atitude”, ressalta Adriano.
A empresa Nossa Senhora de Lourdes tem o projeto Portas Abertas, que seleciona inscritos para visitas guiadas. Foi em sua sede, na Penha, que a Revista O Globo presenciou o encontro de busólogos. Nesse passeio, a grande estrela foi um veículo só com chassi — a carroceria tinha sido incendiada no Complexo do Alemão. “É ótimo recebê-los. São nossos maiores fãs e grandes fontes de informação”, diz Caio Rivera, do setor de comunicação da viação.
Além das visitas a empresas, há confraternizações promovidas pelas equipes, encontros dos busólogos de cada estado e a concorrida “Viver, ver e rever”, exposição de veículos antigos que todo ano atrai milhares para o Memorial da América Latina, em São Paulo.
Apesar de cada vez mais coletiva, o hobby também pode ser solitário. Em 18 de dezembro, na Rodoviária Novo Rio, um jovem clicava os ônibus sozinho. Não é de equipe nenhuma, e costuma guardar suas fotos para si. Gentilmente, pediu para não ser retratado ou identificado. Motivo: soldado do exército, em alguns dias seria transferido para a Maré. Segundo ele, para um militar em zona de conflito, sair no jornal equivale a pôr a cabeça a prêmio. Mas não queria pensar nisso. Era seu dia de folga. Dia de fotografar ônibus.
Fonte e fotos: Jornal O Globo