É natural que nossa leitura do mundo baseie-se predominantemente em uma lógica intuitiva, a partir dos dados mais essenciais captados por nossos sentidos, juntamente com o acúmulo de experiências anteriores. Mas, muitas vezes, esta é em si uma observação enganosa, constantemente direcionada por nosso ângulo de visão.
Não à toa, durante séculos enxergamos o Sol girando em torno da Terra e, só após imolarmos importantes cientistas na Idade Média, prevaleceu a certeza contra-intuitiva que retirou o nosso planeta do centro do Universo.
Se isto é possível ocorrer nas ciências exatas, em muito maior medida observamos na economia, premida quase sempre por incalculáveis variações humanas de humor.
E foi assim que, recentemente, estive diante de uma placa indicando uma direção contra-intuitiva nas contas públicas, especificamente quanto à adoção de tarifa-zero no serviço público de transporte de passageiros, sobretudo quando não há disponibilidade de caixa para sustentar esta subvenção, como é o caso da cidade do Natal.
Para quem controla as contas públicas, esta é uma perspectiva que faz arregalar olhos e arquear sobrancelhas. E logo vem a pergunta: quem vai pagar a conta?
Mas, eis que, ao participar do XXVIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, deparo-me com instigante painel sobre mobilidade urbana. Em meio aos debates, o jurista Romeu Felipe Bacelar Filho defendeu a tarifa-zero sem o inconveniente de aumento de carga tributária nem déficit nas contas públicas.
Para tanto, descaracterizou o dogma de que o transporte público de passageiros – notadamente municipal e dentro de região metropolitana – requereria uma concessão de serviço público, na qual o usuário remunera o prestador com o religioso pagamento da tarifa a cada giro da roleta.
Até aí, tudo bem! Em Curitiba – cidade do defensor da tese -, por exemplo, a tarifa paga não é arrecadada pelas empresas de ônibus, mas, sim, por uma empresa estatal. Posteriormente, o Poder Público paga as empresas contratadas conforme a quantidade de passageiros transportados e de quilômetros rodados.
No entanto, este modelo testado não abre mão da tarifa, apenas muda a forma de sua arrecadação em comparação com o modelo usualmente utilizado. Ora, então, como se daria a adoção de tarifa-zero sem mais carga tributária nem déficit?
A luneta de Galileu, potencialmente modificadora do ângulo de visão, vem com a informação de que o valor gasto por empresas e empregadores domésticos com o vale-transporte dos empregados seria bastante para remunerar todo o sistema, consoante noticiou o grande administrativista, baseado em estudos realizados por sua equipe técnica especializada nesta área.
Em sendo assim, seria apenas uma questão de reclassificar este custo que já é arcado pela sociedade, transformando-o em taxa, com todos os benefícios decorrentes do maior uso do transporte público em detrimento de soluções motorizadas individuais.
E para desnortear ainda mais os nossos sentidos, ainda podemos acrescentar as experiências de cidades que adotaram a tarifa-zero – também citadas no congresso de Direito Administrativo – e, ao invés de ter déficit, passaram a ter aumento de arrecadação, pois as pessoas saíram mais de casa, voltadas a aproveitar os prazeres da vida além muros com a segurança de ir e vir em paz.
Obviamente, não podemos abraçar esta ideia como se fosse a solução para todos os males, mas, devemos resistir à tentação de não a aprofundar por ser contra-intuitiva. Cabe-nos aferir a validade desta afirmação, pois é certo que as soluções até aqui adotadas no Brasil levaram-nos à antessala do colapso da mobilidade urbana, base dos protestos de junho de 2013.
Talvez assim, estejamos a ver o início da retirada da tarifa do centro do transporte coletivo de passageiros, com uma visão mais harmônica do conjunto, tal qual ocorreu com o sistema solar.
Por Luciano Ramos (Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do RN)
Fonte: Tribuna do Norte