Faixa exclusiva: a lua de mel está acabando?

Em junho de 2013, não apenas os governos sentiram o peso das manifestações que colocaram em cheque quase tudo, mas, também grande parte da sociedade civil e sobretudo a mídia, que  mesmo com demora deu o devido peso ao barulho das ruas. O “Estado” levado “às cordas” precisava indicar caminhos a uma sociedade inquieta e plena de razão. Eram necessárias medidas, e elas foram sendo anunciadas. Algumas “de araque”, como se dizia antigamente, ou seja, apenas para ilusão de ótica, para engodo, como anúncios estabanados de alguns governantes e meia dúzia de bobagens anunciadas de supetão por congressistas demagogos. Exceção à boa e séria discussão sobre financiamento e custeio do transporte público pela Frente Nacional de Prefeitos, IPEA e a ANTP em seus fóruns, eventos e manifestalções.
Dentro do manancial de bobagens que assolou o país, de medidas boas e concretas, apenas a prioridade ao transporte por ônibus na cidade de São Paulo. Com quase 300 km de faixas segregadas, a medida teve como resultado imediato o aumento da velocidade média dos ônibus de 30 a 50% e a consequente redução de tempos de viagem.
A ação foi tão positiva que passou no primeiro teste da pesquisa da Folha de São Paulo, com aprovação de 86% pelos usuários de ônibus e de 74% pelos de automóveis. As decisões tomadas, de tão evidentes e lógicas, não poderiam ter outro tipo de reação do público. Governo e mídia estavam, então, começando sua lua de mel.
Passado algum tempo, e estando cada vez mais distante do mês de junho, e do alarido das ruas, a classe automobilizada começou a espernear e a ganhar adeptos nos programas de rádio destinados a informar situações anormais no trânsito. Usuários de ônibus raramente ligam às rádios, mas o usuário de automóveis é quase parte integrante dos meios de comunicação. A ele se dá um ouvido enorme, mesmo para uma informação de um pequeno buraco na pista de rolamento.
Não demorou e a faixa passou a ser “discutível” na visão dos automobilizados. Afinal, passaram a dizer os motoristas: todas as faixas que sobraram para os automóveis estão congestionadas, enquanto a faixa de ônibus está sempre “vazia”. A ideia principal que passou a ser divulgada foi que o congestionamento dos automóveis tinha aumentado e os ônibus passaram a ter um espaço “privilegiado” e vazio! Como se o congestionamento já não tivesse sido suficiente para paralisar a cidade há muito tempo…
Para engrossar o caldo, vozes do governo também começaram, equivocadamente, a dar espaço para que alguém logo sugerisse a existência de uma “luta de classes”: a classe dos usuários do transporte individual e a classe dos usuários de transporte coletivo.  O tema que até então estava circunscrito ao campo técnico e legal (aplicação da lei da mobilidade urbana), e também como uma medida exigida pela opinião pública (melhoria do transporte coletivo), ganhou ares de debate ideológico. Se a lua de mel estava nestas alturas cambaleante, começou a ser abalada de fato.
Para sair da discussão ideológica e preconceituosa de lado a lado, é importante retomarmos o tema do ponto de vista técnico e buscar esclarecer porque as faixas exclusivas melhoram a qualidade de transporte para o usuário, fazem bem para a cidade (inclusive para quem usa automóvel) e ainda por cima reduzem custos operacionais.
Para entender melhor, é necessário um pouquinho de física e de matemática e uma analogia com o carrossel de parque de diversões. Como funciona o carrossel? Há alguns cavalinhos, distanciados igualmente uns dos outros, que giram a velocidade constante assim que o aparelho atinge sua velocidade máxima. Como está preso à estrutura do brinquedo, cada cavalinho se mantem a uma distância fixa do que vai à sua frente. Se um pai desejar fotografar seu filho no carrossel, terá que se posicionar em um ponto fixo e acionar a câmera sempre que o filho passar por ele. Se for um pai com curiosidade exagerada e desejar medir o intervalo de tempo entre cavalinhos, verá que ele também é constante, como também verá que o tempo de ciclo do cavalinho é sempre igual (intervalo de tempo para passar novamente pelo mesmo ponto).
Voltando à linha de ônibus. Assim como no carrossel, os ônibus de uma linha estão distribuídos em intervalos e, embora não estejam em itinerários circulares, a ida ao destino e a volta à origem se comporta como um sistema circular, e o tempo de ir e voltar é chamado também de tempo de ciclo.
Diferentemente dos cavalinhos que estão presos à estrutura do carrossel, os ônibus circulam nas ruas sujeitos a alguns tipos de interferência. A maneira como os motoristas conduzem o veículo é uma delas, com “marchas” distintas entre os ônibus, atrasando uns e acelerando outros. A existência de pontos de embarque e desembarque também é um dos fatores que impacta na regularidade dos intervalos, dependendo da existência ou não de passageiros nos pontos, fazendo com que alguns parem e outros não, assim como a quantidade de passageiros presentes nos locais de embarque, fazendo com que se perca mais ou menos tempo para que os passageiros subam ou desçam do veículo. Parar em cruzamentos semaforizados também desregula o “carrossel”. Não é desprezível o impacto gerado pelo tipo de pavimentação e pela não uniformidade da pista de rolamento: quanto mais buracos ou valetas, mais obstáculos à circulação e mais redução na velocidade média. Finalmente, a maior de todas as interferências é a presença de tráfego de automóveis misturados com os ônibus.
Os sistemas sobre trilhos (metrô e ferrovia) também se comportam como um carrossel, e diferentemente dos ônibus,eles não estão sujeitos a cruzamentos em nível com outras linhas e também não têm automóveis andando entre as composições.
Esse conjunto de “obstáculos” não afeta apenas a regularidade dos intervalos, mas também a velocidade média dos ônibus no trajeto, com o consequente impacto nos tempos de ciclo e também da confiabilidade de horários. Quando se altera o tempo de ciclo, a consequência é econômica.  Imagine-se uma linha de ônibus que oferece um intervalo de uma hora. Imagine-se também que o “tempo de ciclo”tem uma hora de duração (30 minutos para ir e 30 minutos para voltar). Se o “despachante” da linha no ponto inicial tiver que liberar uma partida a cada hora, o mesmo veículo que foi ao destino e voltou pode iniciar novamente outra viagem. Imagine-se, agora, que o fluxo de automóveis nas vias que compõem o itinerário dos ônibus aumentou significativamente, com pontos de congestionamento ao longo do trajeto, passando o tempo de ciclo da linha para duas horas (uma hora para ir e uma hora para voltar). Como a frequência de despachos deve ser de uma hora, é necessário um segundo veículo para dar cumprimento à escala horária, já que o outro ainda está voltando do seu destino.
Este pequeno exemplo, aplicável a qualquer linha, mostra que quando o tempo de ciclo aumenta (velocidade média cai), aumenta a necessidade de veículos e da respectiva tripulação (motorista e cobradores), além de mais combustível, desgastes de peças e pneus, e assim por diante, aumentando o custo operacional e a poluição ambiental. Ao contrário, a redução do tempo de ciclo (aumento da velocidade média), requer menos frota e redução nos demais componentes já falados. Neste caso, essa vantagem pode se transferida para os passageiros como uma redução de custo operacional ou, de outra forma, como um aumento da frequência (intervalo menor entre ônibus). Essa decisão vai depender da política a ser adotada pela prefeitura.
Para funcionar como um carrossel, ter intervalos regulares, velocidade média maior e tempos de ciclos menores, é condição obrigatória que os ônibus circulem em vias segregadas do tráfego comum. As faixas de ônibus não estão vazias como imaginam os irritados motoristas de São Paulo. Elas devem ser assim para que os ônibus possam manter sua marcha a intervalos regulares, como os cavalinhos do carrossel, da mesma forma que as linhas de metrôs não são repletas de composições de trens umas encostadas nas outras.
Não se pode esquecer que o trajeto dos ônibus é rígido, definido por itinerários que devem ser cumpridos rigorosamente, ao contrário dos automóveis que podem se valer de todas as ruas da cidade. Dos 17 mil quilômetros de via da cidade, apenas 4.000 km são utilizados por ônibus e, destes, hoje apenas 300 km são dotados de faixas exclusivas ou corredores.
Apenas as faixas como estão hoje resolvem? Naturalmente que não. Elas podem e devem ser aprimoradas, adicionando-se outras medidas. Uma delas é a manutenção de um sistema centralizado de controle, como existe nos metrôs, de tal forma que se possa corrigir a marcha dos veículos, evitando o sanfonamento (comboios de ônibus simultâneos) e “buracos” no carrossel. Outra medida necessária é a redução dos tempos de parada nos pontos de embarque e desembarque, com cobrança externa da tarifa (pré-embarque), assim como pisos uniformes, ausência de valetas e pavimento adequado. No futuro, também a intervenção nos semáforos, permitindo sua abertura sempre que o ônibus se aproximar do cruzamento.
Da mesma forma que num carrossel infantil cabe um número determinado e finito de cavalinhos, numa faixa exclusiva também só cabe uma quantidade específica de ônibus em circulação. Acima desse limite, o nível de interferência torna o sistema ineficiente e sem qualquer possibilidade de regulagem, exigindo uma racionalização no número de linhas e itinerários, evitando-se superposições. Neste caso, deve ser mantida a capilaridade do sistema e deve se evitar baldeações (ou tipos de baldeações) que acabem por eliminar os ganhos de tempo conseguidos com o aumento da velocidade média dos ônibus nas faixas exclusivas.
A regularidade de intervalos e a confiabilidade da duração da viagem são necessários para se manter um sistema de informações confiável à população. Com esses atributos de qualidade haverá migração de parte das viagens individuais para o transporte coletivo. De um lado isso irá fortalecer o transporte coletivo (mais gente pagando, menos subsídio governamental) e, por outro, reduzirá o número de automóveis na via, reduzindo a poluição ambiental e a quantidade de acidentes de trânsito.
É bom lembrar que a melhoria da mobilidade urbana vai além da implantação de faixa e melhoria do transporte coletivo. Temos que pensar na ampliação do uso da bicicleta como modo de transporte, na mudança de uso do solo da cidade para diminuir distâncias, na melhoria das calçadas públicas e, inevitavelmente, desestímulos ao uso do automóvel para viagens cotidianas. No fundo, é aplicar a lei da mobilidade urbana.
Fonte: ANTP

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