Economia: Por dentro do mundo dos ônibus

Nas ruas de diversas cidades do País, os manifestantes protestaram por centavos – o máximo, até agora, foram 30 centavos em Goiânia. O alvo principal era a tarifa dos ônibus, que, além de cara, remunera um serviço de baixa qualidade. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Natal e outras seis capitais voltaram atrás nos aumentos das passagens. Descobrir qual seria o valor justo para os usuários e as empresas de transporte, no entanto, é uma missão quase impossível diante da falta de transparência por parte das prefeituras e das concessionárias. Trata-se de um setor que mexe com cifras bilionárias – são R$ 30 bilhões por ano, apenas em passagens vendidas, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU).
Em São Paulo, por exemplo, o transporte por ônibus movimentou R$ 5,64 bilhões em 2012. Desse total, 70% vêm da arrecadação com tarifas, 10% são pagos pelas empresas que oferecem vale transporte a seus funcionários, e 20% vêm de recursos transferidos pela prefeitura à iniciativa privada. Com a mudança da passagem de R$ 3,20 para R$ 3,00, na quarta-feira 19, os subsídios somarão R$ 8,6 bilhões até 2016, ou seja, R$ 2,6 bilhões além do previsto. É muito dinheiro, principalmente quando se observa que essas subvenções não são comuns. “Na maior parte do País, é a própria tarifa que remunera as empresas, inclusive a meia-passagem para estudantes e a isenção para idosos”, diz Marcos Bicalho, diretor-superintendente da NTU.
Segundo especialistas, as margens de lucro do setor no País estão na casa dos 12%. Mas a conta exata é difícil de ser feita sem um detalhamento dos gastos e dos investimentos. Em tese, o valor da tarifa e os subsídios deveriam refletir a seguinte equação matemática: o custo das empresas, mais o lucro delas, dividido pelo total de passageiros transportados. O problema é que as contas do transporte público paulistano são nebulosas. “Eu odeio caixa-preta”, afirmou o prefeito Fernando Haddad na véspera da decisão de reduzir as tarifas. “As coisas não estão bem equacionadas.” Não estão mesmo. O próprio sistema de concessões em São Paulo, cuja licitação feita em 2003 termina neste ano, é confuso.
A capital é dividida em sete áreas, administradas por sete consórcios diferentes. Há casos de empresas que participam de mais de um consórcio, como o Grupo Ruas, fundado pelo português José Ruas Vaz. Trata-se de um setor tão fechado que nem mesmo os nomes dos donos, sócios ou presidentes dessas empresas e consórcios são de conhecimento público. Os sites na internet são precários ou inexistem, e o atendimento telefônico não presta as informações necessárias. Entre os grandes grupos que atuam em São Paulo, há ainda o Belarmino, um dos maiores frotistas de ônibus urbanos do País, de propriedade do empresário Belarmino de Ascenção Marta.
Conterrâneo de Ruas, Belarmino é um dos poucos que aparecem em eventos públicos. Em geral, as fotos desses empresários estão restritas aos álbuns de família. Com o objetivo de aprimorar a fiscalização do setor, foi constituída na capital paulista, em 2006, uma comissão formada por representantes da prefeitura e das empresas, que acompanha – ou deveria acompanhar – os números do setor, a chamada “Conta Sistema”. “Nunca deixaram a Câmara Municipal participar das reuniões, se é que elas são feitas”, afirma o vereador Adilson Amadeu (PTB), um estudioso do assunto. “A pegadinha é descobrir a gordura da ‘Conta Sistema’, ou melhor, as toneladas de banha.”
Alheias a uma sociedade que clama por transparência, as concessionárias de serviço público se defendem das críticas, apontando o dedo para outros empresários. “Alguém tem acesso à contabilidade de outros setores?”, indaga Carlos Alberto de Souza, diretor-executivo do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SP-Urbanuss), que não revela o lucro médio do setor. Souza, em todo caso, explica que as premissas das taxas de retorno feitas há dez anos, na época da licitação, não se concretizaram. “ A velocidade média dos ônibus, por exemplo, baixou de 20km/h para 12 km/h, reduzindo a produtividade do sistema”, afirma.
Mas há pelo menos um ponto intrigante nessa história. Nos últimos oito anos, o número de passageiros na capital paulista quase dobrou e a frota de ônibus, encolheu. Logo, é possível deduzir que os lucros cresceram, mesmo com os ônibus reduzindo a sua velocidade média, pois os empresários são remunerados pela quantidade de pessoas transportadas. Para fazer a prova dos nove, o ideal seria contratar uma auditoria independente, avalia Amir Khair, ex- secretário municipal das Finanças. “Seria o primeiro passo para desvendar a atual caixa-preta”, afirma Khair. Souza, do sindicato das empresas de ônibus, discorda.
“A prefeitura já tem informações suficientes para fazer a análise que quiser”, diz. A oportunidade de dar transparência e eficiência ao sistema da maior cidade da América Latina está sobre a mesa. Ainda neste ano, a Prefeitura de São Paulo deve concluir uma nova licitação do transporte que movimentará R$ 46 bilhões. As concessões serão válidas pelos próximos 15 anos. “É preciso suspender a licitação enquanto as planilhas não forem abertas”, afirma Maurício Broinzini, coordenador da Rede Nossa São Paulo. Por ora, a prefeitura apenas prorrogou para o dia 3 de julho a consulta pública.
Problema nacional: A caixa-preta do transporte público, em todo caso, não é privilégio de São Paulo. No Rio de Janeiro, por exemplo, a administração do prefeito Eduardo Paes não divulga abertamente sequer o faturamento do setor, uma vez que não tem o controle sobre a emissão de bilhetes, feita pela Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado (Fetranspor). Com base na renúncia fiscal prevista pela prefeitura neste ano, de R$ 51,8 bilhões, correspondente à isenção da alíquota de 2% sobre o faturamento bruto, é possível estimar que os quatro consórcios que reúnem 63 empresas de linhas de ônibus tenham uma receita de R$ 2,6 bilhões. Em Brasília, a emissão dos bilhetes também era feita pela iniciativa privada, dando margem para manipulações.
“Era o próprio sindicato das empresas que operava o sistema de bilhetagem e entregava a conta para a gente pagar no fim da tarde”, afirma Tadeu Filipelli, vice-governador do DF. Para evitar as fraudes, o governo distrital assumiu o Sistema de Bilhetagem Automática, e licitou todo o serviço de transporte coletivo, substituindo os contratos anteriores feitos sem concorrência pública. A ausência de licitações em outras cidades é um ponto crucial que reduz a transparência de contratos de transporte urbano. Prevista por lei desde 1995, a concessão do serviço ainda não está concluída em capitais como Porto Alegre, Natal, Recife e João Pessoa, de acordo com a NTU, justamente cidades que foram alvo de protestos na semana passada. Se bem conduzidas, as licitações têm o potencial de melhorar a qualidade do serviço e gerar tarifas mais justas. Caso contrário, podem perpetuar a caixa-preta do setor.

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