Uma grande conquista dos trabalhadores brasileiros na primeira metade do século passado foi sem dúvida a jornada de oito horas diárias de trabalho. Foi uma luta que nasceu com o capitalismo e significa o direito ao tempo livre, ou à preguiça, que quer dizer melhor qualidade de vida.
Entretanto, hoje são raros os trabalhadores tupiniquins que gastem menos de duas horas por dia nos deslocamentos casa-trabalho e vice-versa. E não estamos falando apenas de São Paulo, Rio de Janeiro ou de outros grandes centros. Nas médias e nas pequenas cidades, está ocorrendo o mesmo problema.
O automóvel virou definitivamente o rei da cocada preta e ocupa as ruas, calçadas, praças, quintais e onde mais puder se enfiar. E o pobre coitado que depende de transportes coletivos, mesmo em cidades planejadas, como Brasília, gasta até quatro horas diárias nesses deslocamentos. A jornada de oito horas já era, faz tempo.
É certo que tudo começa no fato de o automóvel ser, para boa parte da nossa sociedade, o símbolo maior de poder, de riqueza, de prosperidade ou de outros delírios quaisquer. É o mais poderoso fetiche pequeno-burguês da atualidade.
A chamada nova classe média brasileira vê algo mágico nessa tralha do automóvel. Muitos, mesmo em cidades do interior, moram a menos de um quilômetro do trabalho, mas vão de carro. E os mais aquinhoados às vezes saem da mesma moradia em dois ou três carros para percorrer trajeto semelhante.
As desculpas para isso são as mais esfarrapadas possíveis. Todos alegam suposta liberdade de locomoção. Um vai pra escola, algum culto religioso ou reunião política depois do trabalho; outro vai pra gandaia mesmo, mas tudo justifica. E a alegação é sempre a mesma: não dá pra contar com os transportes coletivos.
Nesse ponto é que entram outros aspectos relevantes da questão. Começando pelo começo. O carro tem isenção de impostos, mais uma porção de outros incentivos. O ônibus, o trem e o metrô, quando existem, são latas de sardinha insuportáveis. E caros.
O fato é que a imobilidade urbana é flagrante país afora. Mesmo para os que andam de carro particular, pois não encontram vagas para estacionar, precisam se proteger dos larápios e por aí vai. E poucas luzes se veem em medidas de governos estaduais ou locais, com algumas raras e louváveis exceções.
Já tem um ano e pouco que foi aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rousseff a Lei da Mobilidade urbana. É um instrumento fruto de décadas de debates e de estudos técnicos de excelente qualidade.
Pela lei, as cidades com mais de 20 mil habitantes terão que fazer seus planos de mobilidade, por exemplo. A implantação da lei, no entanto, esbarra nos mesmos empecilhos que a matriz dela, que é o Estatuto das Cidades, em vigor há 12 anos, mas ainda sem os resultados que se esperava. Para todos os efeitos, os municípios até fazem seus planos diretores, como essa norma determina, mas daí a implantá-los é outra história.
A prioridade que deve ser dada ao pedestre, ao ciclista e ao transporte público esbarra nos interesses do mercado imobiliário e parece que todos vivem felizes com a mania do automóvel.
Só que a maioria da população fica de fora, andando em ônibus emporcalhados, mambembes e superlotados. Pesquisas recentes revelam que 75% dos usuários de transportes públicos em algumas capitais ganham menos de um salário e meio. Qualquer centavo faz diferença, portanto.
As calçadas e faixas de pedestres são descuidadas, quando existem. A ciclovia é vista como equipamento de lazer, não como via de transporte. Ou seja, essa visão prioriza a ciclovia para o lazer daqueles que já andam de carro.
Mesmo esse privilegiado poderia, porém, deixar o carro em casa e ir pro trabalho de bicicleta ou usar o transporte público. Mas isso, de modo geral, não é o que se vê nas cidades brasileiras. O que estaria faltando?
O próprio Estatuto da Mobilidade ensina o caminho das pedras. É acoplar um plano de mobilidade local ao plano diretor e fazer valer. Ou seja, as autoridades locais, onde mora o problema, devem adotar as medidas necessárias e fazer também campanhas públicas que demovam a paixão pelo automóvel.
Junto, é claro, há que se ter transporte público eficiente e barato. Mesmo que isso seja feito com subsídios e isenções. Ou até bancado pelo poder público, que em muitos casos pode muito bem fornecer transporte com qualidade gratuitamente.
Mas esse custo pode ser coberto pela cobrança de pedágios ou taxa de estacionamento a quem não quer abrir mão do carro particular. Há, enfim, muitas formas de dificultar a vida de quem quiser manter esse privilégio. É uma questão de vontade política.
Do jeito que está a situação, é pior pra todos, inclusive pra quem só anda de carro. E o problema cresce a cada dia. É de se supor, portanto, que esse será um tema candente nas próximas campanhas eleitorais. Na prática, os instrumentos legais para isso já existem, é só querer fazer. Ou, então, a imobilidade só aumentará.
Fonte: Correio Braziliense / NTU